Em Salvador, homenagens à orixá que mais sofreu com o processo “embranquecimento” de sua imagem, acontecem com medidas restritivas; em tempos de pandemia, o tradicional presente ofertado pela Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, não ficou exposto para evitar contaminações
Texto: Victor Lacerda / Edição: Lenne Ferreira / Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil
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“Odô Iyá!” A saudação vem da língua iorubá e quer dizer “Mãe do Rio”. Dia 2 de fevereiro, para a cidade de Salvador, é sinônimo de vestir branco e ir à beira mar. É momento em que os praticantes de religiões de matrizes africanas de todo o Brasil agradecem e cultuam a “mãe de todas as cabeças”, rainha das águas salgadas, Iemanjá. Patrimônio Cultural da capital baiana, reconhecida 100 anos depois de seu início, em meados de 1920, a festividade, este ano, teve a sua dinâmica modificada por conta da pandemia pela COVID-19.
Em anúncio oficial, a Prefeitura de Salvador já havia informado as mudanças em todo o funcionamento da festa com medidas restritivas. A primeira delas é a não exposição do presente dedicado à orixá, que tradicionalmente contava com grande estrutura para que os devotos pudessem vê-lo. Saindo, este ano, do Dique do Tororó, a oferenda já foi entregue desde às 8h da manhã, na casa de Iemanjá – espaço gerido pela Colônia dos Pescadores do Z1 – na praia do Rio Vermelho.
Para o professor de história, cantor e iniciado no Ilê Axé Odé Ye Ye Ibomin, na cidade de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, Carlos Barros, as mudanças foram necessárias e acredita que grande parte do povo do axé compreende tais medidas.
“As casas que fazem as oferendas, neste momento, precisam compreender que o candomblé, por exemplo, está inserido em um contexto mais amplo, que é a sociedade civil. É uma religião que está inserida em mundo que tem outras regras, que tem outras formas de atuação, que coexistem com a nossa religião. É um momento de voltar aos fundamentos básicos do culto aos orixás para entendermos que esses seres pertencem à natureza e que nós precisamos rever a nossa relação com ela”, pontua o praticante.
Membros do setor cultural tiveram que pensar em novas formas de homenagear Iemanjá por meio das artes. Um dos eventos mais conhecidos dentro da festa é o “Festival Oferendas”, que acontecem nos dias 1 e 2 de fevereiro. Organizado pelo Lálá Casa de Arte, a programação levava à varanda do espaço nomes fortes da música baiana, que se apresentavam, gratuitamente, em frente ao mar, no Rio Vermelho. Este ano, em sua décima edição, o evento decidiu passar para o formato digital e conta com a presença da artista Nara Couto em sua grade de shows.
“Que bom que podemos contar com as redes sociais para declararmos nosso amor à Iemanjá e nossa fé. Senti muito a falta do contato com as pessoas, a troca de olhares, o cantar junto, sabe? Esse show que eu faço no dia dois de fevereiro é um show para louvarmos juntos, chorarmos juntos, rirmos juntos. Não ter esse público trocando essa energia, de fato, é bem diferente, mas continuemos no virtual e na esperança que, no ano que vem, estaremos juntos”, torce Nara.
Créditos: Max Haack/Prefeitura de Salvador
O trânsito da cidade, que em anos anteriores tinha barreiras instaladas pela Superintendência de Trânsito do Salvador (Transalvador) para a circulação de pedestres, funciona normalmente com a autorização da passagem de veículos, evitando a aglomeração de pessoas nas vias próximas à praia. O acesso às praias do Rio Vermelho e da Paciência estará fechado até o fim do dia. Em 2020, o presidente da Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, Z1, Marcos Souza, em entrevista ao jornal local Correio 24 Horas, esperava contar com cerca de 1 milhão de devotos na data.
Os estabelecimentos também foram notificados sobre comercialização de comidas e bebidas. Todos os depósitos, comércios informais e food trucks não poderão funcionar hoje. Já bares e restaurantes deverão abrir as portas só após às 19h. Padarias, lanchonete, mercados e afins estão autorizados a funcionar.
Em coletiva de imprensa, o atual prefeito Bruno Reis pediu a conscientização da população. O gestor afirmou a existência de 64 quilômetros de orla na cidade e solicitou às pessoas, que têm seus compromissos religiosos na data, que pudessem ocupar pontos menos movimentados da beira mar da cidade.
Outros eventos que constituem a grade de comemorações religiosas da cidade, como a tradicional Lavagem do Bonfim, que este ano não realizou a procissão saindo do Largo da Conceição, em janeiro, já anunciavam restrições para a proteção dos devotos. O mesmo aconteceu com a Festa de Santa Bárbara, no dia 4 de dezembro, que restringiu a capacidade de fiéis que poderiam entrar na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e disponibilizou uma live para os que não conseguiram estar presentes.
Membros do setor cultural tiveram que pensar em novas formas de homenagear Iemanjá por meio das artes. Um dos eventos mais conhecidos dentro da festa é o “Festival Oferendas”, que acontecem nos dias 1 e 2 de fevereiro. Organizado pelo Lálá Casa de Arte, a programação levava à varanda do espaço nomes fortes da música baiana, que se apresentavam, gratuitamente, em frente ao mar, no Rio Vermelho. Este ano, em sua décima edição, o evento decidiu passar para o formato digital e conta com a presença da artista Nara Couto em sua grade de shows.
“Que bom que podemos contar com as redes sociais para declararmos nosso amor à Iemanjá e nossa fé. Senti muito a falta do contato com as pessoas, a troca de olhares, o cantar junto, sabe? Esse show que eu faço no dia dois de fevereiro é um show para louvarmos juntos, chorarmos juntos, rirmos juntos. Não ter esse público trocando essa energia, de fato, é bem diferente, mas continuemos no virtual e na esperança que, no ano que vem, estaremos juntos”, torce Nara.
De origem africana, Iemanjá é preta
Embora Iemanjá nunca tenha deixado de estar relacionada às religiões afro-brasileiras, sua representação mais conhecida, que se popularizou no imaginário do povo, está muito distante da mãe africana de seios fartos que reinava e era cultuada nas terras de Abeokutá, às margens do Rio Ogum, na Nigéria. Foi o sincretismo que criou outra forma para a imagem de Iemanjá. Além da relação com a Nossa Senhora da Igreja Católica, mitos e lendas indígenas contam histórias sobre Iaras, Janaínas e mães d’água que ajudaram na formação de um imaginário que inclui várias faces dessa entidade. Entre pesquisadores e historiadores, o consenso é de que Iemanjá, além de ser uma mulher negra, é uma mulher de seios muito fartos, quadris largos. Há um completo apagamento de sua imagem real que dá vez à imagem de uma mulher branca com barriga chapada.
Apesar da apropriação e violência simbólica, a popularização da orixá lhe rendeu fama e tem fomentado um nicho ainda pouco explorado no Brasil, que é o turismo étnico-racial.
“Artistas, ambulantes e toda uma estrutura social se organizam para festa”. Não sei bem se o termo apropriação, por ser uma expressão complexa, caberia. É um termo que pode ser usado em contexto positivo ou negativo. Tudo que acontece em torno da festa de Iemanjá é apropriado, no sentido de estar à serviço de uma manifestação em torno da festa. Então, é preciso discutirmos outros fatores para entendermos melhor, como a movimentação financeira gerada pela festa e como isso atingiria a proporção do evento. A mobilização econômica também dialoga com a mobilização religiosa, inclusive dentro do próprio axé”, avalia o professor Carlos Barros.
“O bom mesmo é saber que, independente das apropriações, das mudanças sociais, que vão continuar acontecendo, o mais importante é cultuar a espiritualidade e, não necessariamente, isso precisa se restringir ao dia dois de fevereiro e de estar no Rio Vermelho na data”, conclui.