Em entrevista, cantora diz que vida é uma “contradança”, fala sobre o novo trabalho, candomblé, colorismo e samba
Texto: Guilherme Soares Dias | Edição: Nataly Simões | Imagem: José de Holanda/Divulgação
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Filha de Iemanjá e cria da Barra Funda, Zona Oeste da cidade de São Paulo, a cantora Fabiana Cozza, 44 anos, lançou o oitavo álbum de sua carreira. O trabalho chamado Dos Santos, canto é reza em louvor da ancestralidade afro-brasileira é classificado pela artista como um “manifesto poético antirracista melhor verbalizado, poético, musical, mas de cunho político”.
São 19 faixas, a maior parte inédita e com maior participação de mulheres que, segundo Fabiana, têm ganhado cada vez mais espaço no samba, arte que continua menosprezada. “Muito lembrada no carnaval e esquecida fora dele”.
Em tempos de crescente intolerância contra as religiões de matriz africana, a cantora afirma que exaltar os orixás é importante por que as mensagens dessas divindades são “a defesa da vida, da sanidade mental, de conseguir olhar a sociedade de forma mais justa”. A filosofia de terreiro leva a esse entendimento de que a vida é um movimento de força e de energias naturais. “É um disco de muitas poéticas, porque traz a potência de um povo que tem ancestralidade, memória, contribuições indizíveis e incontáveis para o mundo”, considera.
Fabiana começou a cantar profissionalmente em 1999, aos 21 anos, e em 2020 passou quatro meses e meio isolada numa casa no meio do mato, sem internet e como pouco sinal de telefone. A cantora aproveitou o período para compor e meditar, além de dar-se o direito de não fazer nada. Ela acredita que a vida seja justamente essa grande contradança.
Como resposta aos passos dados até aqui, Fabiana não se furta de comentar o episódio em que precisou renunciar ao papel de Dona Ivone Lara no musical homônimo após a escolha ter sido questionada nas redes sociais pelo fato dela ter a tonalidade de pele mais clara do que a sambista homenageada. “Aprendi que não tenho que ficar provando minha negritude para ninguém”, desabafa.
A cantora lembra ainda que sempre assumiu sua negritude e seu pertencimento ao candomblé, ao samba, à Camisa Verde Branco e ressalta que o colorismo não é o debate mais urgente para a negritude hoje, que deveria ter como principal pauta: a união contra o governo de Jair Bolsonaro.
Confira a íntegra da entrevista concedida por Fabiana Cozza ao Alma Preta:
AP: Você disse que estava emocionada com uma história que aconteceu hoje. Quer dividir com a gente?
Fabiana: Eu preciso falar sobre isso se não vou começar a chorar. Acabei de ver vídeo de uma atriz e diretora de teatro Meran Vargens, que é baiana e fez campanha de televisão sobre câncer de mama com várias pessoas famosas e ela tirava a camiseta porque ela já tinha passado por aquilo. Estou lendo um livro chamado “Vozes articuladas pelo coração”. Começo a ler e entendo que era a mesma pessoa. E eu vi muito essa propaganda.
Como histórias como essa te inspiram? Isso vira música depois?
Tive esse reencontro com a Meran, que superou o câncer de mama e é uma mulher preta clara, como eu. Ela ouviu muito que era uma guerreira. Eu entendo essa ideia, de mulheres que vieram antes de nós e com luta sobreviveram. Em vez de ser guerreira, ela preferiu ver a vida com uma grande contradança, você tem uma ação e as respostas. As esquinas da vida, que vai dobrando. Eu fico emocionada. É muito esperançoso em tempos desesperançados, hostil e fundamentalista como o nosso. Eu acho que aí entra o aprendizado da filosofia do terreiro que é conseguir entender a vida como um grande movimento de força e de energias naturais. Quando a Meran fala isso, uma pessoa que passou por uma doença tão dura e cruel e ter essa sabedoria.
Ela conta que quando foi tomar um banho de mar disse para Iemanjá: ‘Então leve os meus seios’. A vida é essa possibilidade de descobrir a poesia inclusive no outro, em falas como essa. Hoje eu ganhei o dia. Estava dando aulas de canto, tem pessoas que me procuram para cantar. Então, eu auxilio a encontrar a expressão para a voz, não é algo tecnicista. A voz revela, mas traveste a nossa vida. Ela é um enredo da nossa vida, de coisas que a gente consegue dizer ou não consegue. É ferramenta potente. Uma mulher dizer um negócio desse é um aprendizado e uma inspiração para o que o que eu tenho que dizer e cantar.
Você lançou o álbum Dos Santos, onde canto é reza em louvor da ancestralidade afro-brasileira. O que traz nesse novo trabalho?
Esse é um disco de novas canções sobre essa cultura do terreiro. São canções inéditas, com exceção de duas, uma é o “Senhora Negra”, do Sergio Pererê, que estou considerando inédita porque a primeira gravação é minha e quase ninguém escutou porque foi pouco promovida. E a segunda que já foi gravada é do Douglas Germano chamada “Tempo Velho”.
É um disco de muitas poéticas, porque traz a potência de um povo que tem ancestralidade, memória, que tem contribuições indizíveis e incontáveis para o mundo. Um povo que é menosprezado e que tem a equidade cada vez mais distante. É por isso que esse disco por ser lançado nesse momento tem uma voz mais harmônico do que teria se fosse lançado na vida que tínhamos. No momento de isolamento em que as pessoas tiveram que se despedir da sua vida e tiveram que se resignar. Muita gente está transformando sua vida e redimensionando seu papel social. É mais potente por isso.
Em um momento de crescimento da intolerância contra as religiões de matriz africana, você faz um disco para exaltar os orixás. Qual a importância disso?
Fala da coisa mais importante que temos: a vida com saúde. Orixá é isso. São movimentos, pensamento, entendimento da vida como grande fenômeno, não é perfumaria. Vida é mais Elza Soares, mais lata d’água na cabeça. Eu não estou analisando a qualidade da vida. Estou dizendo que a vida é esse movimento, essa contradança, como a Meran Vargens disse.
São quantas músicas no novo álbum?
19 faixas. A primeira é um texto do Tiganá Santana feita a partir de uma música instrumental do Mû Mbana, artista de Guiné Bissau, que tive a sorte de encontra-lo no Brasil no ano passado. Ele ouviu o disco e gravou uma canção de improviso e fez voz para a canção “Tempo Velho”. Esse disco acaba sendo amplificado. Minha voz está emprestada. Não é o meu disco. Fiz esse disco como uma resposta. É o meu manifesto poético antirracista melhor verbalizado, poético, musical. Mas de cunho político. Sou uma mulher de candomblé, de jurema sagrada. Sou artista negra de frestas. Não tenho gravadora, não tenho empresário. Sou dona do meu caminho, junto com parceiros que vem junto. Não tenho incentivo de governo em que somos muito amaldiçoados. Não faço arte como perfumaria. A arte que faço é resistência por existir nas frestas.
Qual seu orixá de cabeça?
Sou de iemanjá. Tem a ver com característica de ser mãe generosa, que abarca as pessoas, eu uno muita gente. Vou fazendo uma teia. Esse disco traz pessoas, que tem proximidade com terreiro e pessoas que nunca pisaram lá. O diretor musical Fi Maróstica não é de candomblé e fez obra-prima porque é sensível, se permitiu escutar. É importante ouvir o outro, não precisa pertencer a aldeia do outro para respeitar. Precisa se entender existente no outro. A gente só existe porque se comunica. A gente não é bicho. A gente tem raciocínio. É afetado e se afeta.
Tem coisas novas no processo artístico do disco?
Esse disco congrega gente preta e muitas mulheres. É o primeiro disco que congrega muitas mulheres. Apesar de ter feito um disco todo em homenagem a Dona Ivone Lara. As mulheres fazem esse disco. É a Beth Beli, do Ilu Oba de Min, Simone Sou e Xeina Barros na percussão, Nega Duda cantando, Sandra Simões compondo, Ceumar, eu. É um disco potente. Sempre fiz disco em que homens eram os principais parceiros. Nesse, mulheres assumem um instrumento que ainda é visto como masculino que é o tambor. Há também três percussionistas homens: Ari Colares, Cauê Silva, Douglas Alonso. Tudo é político para mim. Essas escolhas não são realizadas de forma cartesiana. Não tento controlar o processo artístico. Vou convidando e são como sopros. Quem tem tempo, quem quer fazer, vem. Mas foi evidente que precisava estar com essas mulheres.
Como será o lançamento oficial?
O lançamento vai ser no dia 17 de outubro, no Projeto da Casa de Francisca, que a Laís Bodanzky é a curadora. Vai ser uma live com venda de ingresso para poder ajudar quem está trabalhando. Estou estimando show ao vivo a partir de maio de 2021, quem sabe.
Tem uma música que é carro-chefe?
Não tem. Apesar do disco não ser xirê, é ritualístico. Cada entidade mencionada vem com enredo que carrega essa persona e sua potência, também traduzida nesse poema que esses compositores foram capazes de elaborar. Mas tem a preferência das pessoas, os filhos de Ogum são muito presentes. Então, a música “Ogã de Ogum”, do Luiz Antônio Simas é bastante pedida. O Simas me ajudou muito nesse disco. Ele é compositor, historiador e babalorixá do Rio de Janeiro. Ele foi a pessoa com que fui trocando pensamentos e percepções. Essa é a canção mais ouvida até agora dos três singles que soltei.
Sabia que lançar disco que fala de entidades ia despertar muito a emoção das pessoas, de quem é filho como eu e de quem não é. As mensagens dos orixás, no fundo, são a defesa da vida, da sanidade mental, de conseguir olhar a sociedade de forma mais justa. É disso que esse disco fala. Queremos viver em paz. É um disco amoroso, afetivo. As pessoas querem que eu faça lives, cante, mas vou esperar dia 17. Vou me preparar. Não é fácil cantar essas coisas. Quando coloca palavras sagradas na boca, tem responsabilidade de propagar boas palavras, como diz o Pai Sidnei Nogueira. É isso que tentei fazer no disco e que quero fazer daqui para frente na vida. Tenho até vontade de fazer outro disco assim. Claro, que essas boas palavras vão ferir aqueles que não as têm.
Quem são suas maiores influências musicais?
Muita gente da música brasileira: Milton Nascimento, Alcione, Leni Andrade, Clara Nunes. Os sambistas Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Zé Keti, Geraldo filmes. Eu ouvi muita coisa diferente. Minha primeira escola musical foi meu pai, que sempre tocou muita música na minha casa, foi intérprete da escola de samba Camisa Verde e Branco. Como homem preto, era ouvinte dos artistas americanos pretos e fã da Nina Simone.
O ano de 2020 foi atípico para todos nós. O que você aprendeu com esse ano?
Foi um ano de muitas mudanças. Vivi quatro meses e meio na roça, numa casa de 50 metros quadrados. Eu e duas cachorras no meio do mato. Tinha sinal de telefone que precisava colocar o celular para cima. Quando precisava de internet descia para a cidade mais próxima, no interior de Minas, que fica 6 quilômetros. Foi uma experiência interessante e muito reveladora de questões particulares. Voltei porque precisava terminar o disco e porque não estava mais aguentando de saudades dos meus pais e do meu companheiro que estavam em São Paulo. Eu vim dos Estados Unidos em março e tive que ficar em quarentena. Pensei vou ficar uns 14 dias lá e depois volto. Só que fecharam a cidade. Se eu saísse não entrava mais. Achei melhor ficar o mês lá. Esse um mês virou dois, três e nos quatro e meio voltei.
E o que você fez nesse período de pandemia?
Eu me desliguei do mundo. Comece a me dedicar a algo que há muito não fazia, que é compor. A música “Manhã de Obá”, desse disco, nasceu lá. Ceumar estava esperando que eu mandasse a poesia. Um dia abri a janela e a montanha fica bem na frente de onde eu moro. Ela estava toda encoberta e veio muito forte a imagem de Obá para mim e eu escrevi. Me dediquei a escrever, comer melhor, tomar sol, meditar todos os dias e pensar que minha vida não é só o trabalho.
Sempre fui uma pessoa que trabalhou muito. Isso é da minha família. Meu pai tem 76 anos, foi internado na UTI e estaca com o celular lá trabalhando. É algo forte de que para conquistar algo precisa trabalhar muito. Comecei a perceber que posso ter momento de descanso, prazer e não fazer nada. Fazer nada é importante, quando as coisas decantam e conseguem iluminar. Só consegui terminar o disco no meio da pandemia. Esse tempo na roça foi importante para conseguir fazer. Voltei com tudo mais evidente.
Em 2018, você protagonizou um episódio que hoje seria chamado de cancelamento na internet quando foi escolhida para interpretar dona Ivone Lara no musical. A discussão do colorismo que foi levantada está cada vez mais presente. O que você aprendeu com esse episódio?
Isso faz parte da minha vida. Não tenho problema de falar. Na época não se usava a palavra cancelamento. Foi uma tentativa. Cancelamento é um silenciamento. Acredito no diálogo, não acredito nessa tática, silenciamento remete a outras práticas que são abjetas como a tortura. Aprendi a lidar com algo que me feriu profundamente. Atingiu a minha existência e as pessoas que me deram a existência. Não estou só falando de laços biológicos, mas de laços ancestrais. Aprendi que não tenho que ficar provando minha negritude para ninguém. É meio raro porque no meio artístico, nem todos os artistas se assumem, como sempre fiz.
Sempre tive orgulho de dizer que sou do samba, da Barra Funda, da Camisa Verde e Branco, uma escola que está há anos fora do grupo especial, nunca tive vergonha de dizer da origem dos meus antepassados, pessoas muito pobres, e que sou mulher de candomblé. Só por aí não preciso entrar em discussão de que o fato de eu ter menos melanina ou mais melanina me autoriza mais ou menos no meu lugar de lugar de mulher negra. Não acredito nisso. Isso também não tira a minha consciência diante de mulheres que têm pele mais escura que a minha o tanto de racismo que elas sofreram e que eu não sofri na mesma dimensão. Não perco consciência por ser uma mulher negra de pele clara, nem fujo a luta por que tenho a tonalidade de pele mais clara, como já ouvi que seria uma proteção.
Não fujo da posição antirracista. Sempre me coloquei à disposição da luta antirracista. Nesse momento precisamos identificar as reais pautas que estão diariamente violentando o povo preto. Não acho que a pauta do colorismo seja fundamental a ser debatida nesse momento e, sim, enfraquece todo e qualquer ganho político. Os inimigos de quatro anos para cá são muitos claros. Temos um presidente da República que já deu declarações homofóbicas, racistas, misóginas. Precisamos estar cada vez mais unidos, discutindo saídas. E apoiar pessoas que estão na luta diária contra o racismo, contra o fundamentalismo religioso disfarçado e que é um projeto político.
Como você vê o embranquecimento das religiões de matriz africana?
É preciso tomar cuidado. Existem pessoas de tonalidade de pele branca e isso não significa que não filhas de santo. Elas são respeitadas e devem ser respeitadas como filhas de santo. Quando a gente entrega cabeça, o orixá não olha a sua cor. Os brancos de religiões de matriz africana precisam ser aliados da luta antirracista, tem que ser defensores. Quando fala de intolerância religiosa fala de estrutura racista. E a destruição de terreiros é terrorismo religioso. Quando são atacadas mãe de santo as pessoas tem que ser presas.
A fé das pessoas e a chegada de gente branca que se sente pertencente a essa família é muito bem vinda e precisa ser respeitada. Para que a religião que eles seguem e que tem mãe e pais pretos exige o engajamento da luta antirracista junto conosco. Sabendo, inclusive, respeitar qual seu lugar e não se apropriar do que não deve. Esse lugar pertence a todos que se sentem chamados e se comprometem com essa cultura. Quando vai para o candomblé diz sim o orixá, a para cultura preta, para mãe e pai de santo preto, tambor, para dança de pé no chão, usar conta no pescoço e defender. Ser egrégora. Nesse sentido, os brancos podem ganhar consciência de que como o tom de pele os protegem podem defender muito mais. Essa revolução é potente também.
E como você tem visto o samba hoje?
O samba tem ganho muitas mulheres como representantes potentes dessa arte. Tem muitos grupos de sambas femininos, novas compositoras. Segue sendo arte menosprezada e marginalizada. Muito lembrada no carnaval e esquecida fora dele. Não à toa, no meio da pandemia, quem está sofrendo são os brincantes populares e os sambistas, que não gozam de outro trabalho senão fazer seu samba todo fim de semana.