Complexo de “super herói” é um dos atravessamentos do racismo e precisa de autoconhecimento e valorização da negritude para ser contornado, apontam psicólogos
Texto: Guilherme Soares Dias | Edição: Nataly Simões | Imagem: Academia do Psicólogo
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Na minha carreira como jornalista sempre trabalhei mais que outros colegas para provar que poderia ocupar os postos em que estava e não ser questionado pela “síndrome do impostor”. Fiz duas pós-graduações, intercâmbio e vários cursos para estar à altura. Quando o jornalismo passou a se mostrar um ambiente inseguro por conta da crise que passava e que gerava demissões em massa, eu quis ter um plano B e adicionei uma nova área no currículo: empreendedor no Turismo. Toco as duas coisas ao mesmo tempo tentando dar conta de tudo.
A rapper Preta Rara, que também é professora de História e influenciadora digital, afirmou em entrevista que acumula várias profissões e trabalhos por saber que o “quartinho de empregada” está sempre a esperando. Ela já atuou como empregada doméstica e escreve justamente sobre os abusos que sofreu na profissão no livro “Eu, empregada doméstica”.
A doutora em Patologia Humana e Experimental, Jaqueline Goes, coordena pesquisas de ponta e sequenciou o genoma do coronavírus. Ela também relata precisar se provar diariamente. “Nós sofremos muito mais por sermos pretos, temo que nos dedicar mais para sermos vistos. O que eu levo é ser duas vezes mais dedicada, mais interessada, para que não caia no cantinho do esquecimento. São coisas que são difíceis de tirar, mesmo sabendo da competência”, considera.
Mas, afinal, o que é essa carga que faz pessoas negras terem que trabalhar mais e como combatê-la? Os psicólogos ouvidos pelo Alma Preta são unânimes em dizer que essa necessidade de se provar é um dos atravessamentos do racismo que coloca pretos e pardos no lugar de incapaz. “Isso é tratado por meio da ressignificação. Fazer movimento de sankofa, que significa retornar ao passado para ressignificar o presente, e é isso que fazemos no atendimento. Entender que esse lugar não nos cabe. Não somos descendentes de escravos, somos descendentes de um povo brilhante, inteligente”, afirma o psicólogo Nelson Gentil, ressaltando que a partir dessa valorização trabalha o entendimento de que pessoas negras podem ocupar todos os espaços.
O psicanalista e doutorando da PUC-SP, Kwame dos Santos, costuma fazer uma “escuta política” dentro do consultório para tornar o atendimento ético, já que considera a política um campo de negociação. “O corpo negro é um corpo político, ou melhor, são politizados por serem corpos marcados. Isso significa que são corpos que o tempo inteiro têm que negociar a sua existência, a sua identidade. Isso significa que de alguma forma são impregnados de identidade de negritude que faz com que carregue uma dívida por existir e de alguma forma precisa lutar por existir”, pontua.
Os efeitos psicológicos disso se materializa de diversas formas. Segundo o psicanalista, as pessoas negras precisam a todo tempo produzir mais por conta desses marcadores sociais de diferença, que são resultados do colonialismo que atravessa todo o campo social. “Quando há esse estigma de sobrecarga, lembro de uma paciente negra que diz que nosso corpo nunca foi nosso. O corpo dela foi alvo de várias intervenções médicas e jurídicas, isso produz necessidade de negociação e essa ‘dívida’. Por isso, tem que fazer duas vezes mais”, enfatiza.
A ressignificação dessas marcas no atendimento psicológico ainda tem “referenciais limitados”, segundo Kwame. A estratégia usada pelo profissional é de singularizar essas marcas e entendê-las por meio de suas diferenças. “Precisa desse processo de tornar-se negro, de enegrecer. Entender que o racismo é um dado estruturante das relações, como ele de alguma forma está naturalizado, se atualiza, atuando no campo do desejo”, afirma.
Entre as formas de combate também está a quebra do mito da democracia racial, que estrutura o campo das relações sociais que ajuda a entender experiências como ligar a televisão e não se ver ou estar em uma sala de aula de universidade somente com colegas brancos. “Essa violência constante deixa marcas. Uma é o auto ódio. Odiar a sua negritude e outra de almejar ideais brancos, quem diz isso é a Neuza Santos Souza. Pessoas negras são questionadas o tempo todo sobre o que é ser negro, enquanto brancos não sabem o que significa ser branco”, analisa.
Já a psicóloga Mariana Cancoro de Matos ressalta que enquanto as pessoas brancas estão simplesmente existindo e não precisam ocupar uma posição de respeito para se provarem, das pessoas negras exigem-se que sejam “super-heróis”. “Não nos vemos refletidos em livros, rádio, TV. Quando a gente aparece é com uma narrativa do que o branco tem sobre a gente, de ver vendida a ideia de que tudo que faz parte da narrativa branca e europeia é superior. Nós somos inferiores e a gente precisaria muito para se esforçar perto de um padrão branco de ser”, destaca.
De acordo com Mariana, isso faz com que as pessoas negras tenham a sensação de que estão “atrasadas” por conta de todos os desafios impostos e de que não vão conseguir alcançar. “Fica essa ideia de que é preciso ser super-herói para ocupar os lugares e ser respeitado e olhe lá. Mesmo dentro disso fica a situação de que é preto único entre brancos e alienado de si mesmo”, salienta.
Para combater essa alienação é preciso reforçar, segundo a psicóloga, que as conquistas e valorizações do povo preto não foram contados devidamente e passaram por distorções. Na psicologia o autoconhecimento é considerado vital para romper algumas correntes. “A gente enquanto povo tem que confiar nas nossas próprias percepções e não ficar absorvendo expectativas brancas. É importante que consigamos resgatar nossos referenciais de saúde, de família, de bem viver, de comunidade, de conhecimento. Todo o valor que temos. O caminho para nossa cura passa por aí”, conclui Mariana.