O professor Marcos Queiroz, doutorando em Direito pela Universidade de Brasília, explica a ligação das regras eleitorais americanas com o passado de escravidão negra no país
Texto: Nataly Simões | Imagem: Getty Images
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Enquanto os Estados Unidos e o mundo aguardam ansiosamente o resultado da eleição presidencial, muitas pessoas levantaram dúvidas e questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral norte-americano.
Isso porque o país escolhe seu presidente não pelo voto direto como ocorre no Brasil, por exemplo. A escolha é feita por meio de uma votação indireta no Colégio Eleitoral e cada estado tem direito a um determinado número de delegados nesse colégio. O candidato que vence a eleição em um estado leva, em geral, todos os delegados de lá. Em duas das últimas cinco eleições isso aconteceu, em 2000, com George W. Bush, e em 2016, com Donald Trump.
A razão de a maior potência do mundo ainda aderir a um sistema eleitoral que não privilegia a vontade popular tem raízes ainda no período escravocrata. É o que aponta o professor Marcos Queiroz, doutorando em direito na Universidade Federal de Brasília, em uma thread feita em sua conta no Twitter.
Segundo o professor, durante o processo de elaboração da constituição estadunidense em 1787, os estados escravistas queriam que os escravos fossem incluídos na contagem da população, mas que não votassem. Já os estados onde a escravidão era proibida não queriam que os escravos fossem contados a menos que eles fossem tratados como cidadãos. O impasse levou a um acordo entre o Norte e o Sul, chamado “pacto com o diabo”.
“O pacto estabelecia que cada escravo seria contado como o equivalente a três quintos de um homem livre para efeitos de se estabelecer os parâmetros da representação no Congresso. Porém, tal norma não era suficiente para acalmar as tensões entre Norte e Sul. Como os estados não confiavam uns nos outros em decorrência das polêmicas em torno da escravidão, foi estabelecido o sistema indireto com número de votos pré-definido para cada colégio eleitoral”, explica Queiroz.
O professor acrescenta que em termos de representação os estados sulistas saíram vitoriosos, na medida em que até a Guerra Civil, que durou de 1861 a 1865, os escravos contavam com 3/5, mesmo que a população negra não fosse tratada como humana. “Após 1865, com a abolição da escravidão, essa vantagem representativa se acentuaria”, complementa Queiroz.
Racismo e exclusão permanecem
Nos EUA, cada estado é responsável por definir as próprias regras específicas de votação. O que também é visto por Queiroz como algo problemático, uma vez que não há competência federal para uniformizar o processo eleitoral. Isso significa que não existe uma justiça uniforme como é o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, no Brasil.
“O racismo não está só na origem do sistema eleitoral, mas também na sua perpetuação contemporânea, na medida em que continua a dar mais peso aos estados sulistas, derrotados em 1865 [na guerra civil] e com peso demográfico menor”, salienta o professor.
Em um contexto mais amplo, Queiroz defende que a forma como o sistema político norte-americano funciona “legitima o supremacismo branco e nega a possibilidade de democracia para os negros”.
O professor recorda que essas regras estaduais serviram para impedir pessoas negras de votarem no período de segregação racial no Sul, conhecido como Jim Crow. “Da população negra, exigia-se, de maneira discricionária, requisitos absurdos, os quais não eram cobrados dos brancos. Serve hoje para negar eternamente o direito ao voto a uma imensa parcela da população negra que teve passagem pelo sistema penal”, pondera.
Nas eleições presidenciais de 2020, quase 5,2 milhões de americanos não puderam votar por terem condições penais, de acordo com o relatório do centro de pesquisa e advocacia Sentencing Project. A perda dos direitos eleitorais varia entre os estados, que podem restringir o voto daqueles que estão presos, dos que ainda aguardam pela condenação penal e até de pessoas que já cumpriram suas sentenças.
O relatório indica que os mais impactados por essa restrição, em especial a última, são os homens negros: um a cada 16 em idade de votar é privado de seu direito eleitoral, uma taxa 3,7 vezes maior do que entre americanos não negros.