Atividades culturais foram interrompidas durante a pandemia e os quilombolas do Pará tem colocado como foco a sobrevivência; liderança criticam a falta de apoio do poder público
Texto / Flávia Ribeiro I Edição / Pedro Borges I Imagem / Acervo pessoal de Páscoa Sarmento e Magno Nascimento
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Neste momento, os tambores dos mestres de carimbó já teriam tocado algumas vezes, em quilombos de Salvaterra. Na comunidade África, no município de Moju, os mutirões reuniam comunidades e eram a principal forma de escoar produtos da agricultura familiar e artesanato. Com a pandemia do Coronaviríus, tudo parou. Tudo está suspenso. A questão agora é sobrevivência.
“Os mestres estão recolhidos. Mestre Zampa, Vavazinho e Duca, todos na casa dos 70/80 anos, são aposentados. Nós, artesãs, paramos nossas produções e ainda não retomamos. Estamos todos com muito medo”, afirma Páscoa Sarmento, pesquisadora e moradora do quilombo do Bairro Alto, em Salvaterra, município da ilha do Marajó, se referindo aos mestres de uma das manifestações típicas da região: o carimbó. Atualmente, o município registra 13 casos de Covid-19, com 2 óbitos.
A pesquisadora diz que o município conta com sete mil quilombolas, em várias comunidades e reclama a falta de projetos para amparar as comunidades. “Não temos apoio econômico. Sobre informações, os agentes de saúde têm nos orientado, mas nem todos os quilombos dispõem. Estamos fazendo tudo por nossa conta. Só no meu quilombo somos mais de 600 pessoas”.
Já no quilombo África, no município de Moju, nordeste paraense, esta era a época do mutirão de limpeza dos açaizais e das roças. “Estávamos produzindo artesanatos, produzindo e comercializando farinha e outros produtos agrícolas. Infelizmente, agora estamos de porteiras fechadas e todos com preocupação e, às vezes, temendo a tudo e a todos”, relata Magno Nascimento. “Temos as festividades do Divino, que participamos em Moju. Temos a festividade de São Sebastião, que é realizada na comunidade Laranjituba, no início de julho. A esta hora a comunidade já estava reunida, com muita coisa para a festa sendo feito”, afirma. As festividades consistem em celebrações religiosas, leilões, bingos, visitas de dezenas de comunidades e apresentações culturais.
Os mutirões eram realizados diariamente. “Na minha região é uma das marcas das tradições. É a forma de compensar a falta de recursos financeiros e fortalecer as lutas comuns entre comunidades, famílias e amigos, informa Magno Nascimento.
A atividade era feita em grupos abertos ou grupos de trabalho. Os mais jovens, principalmente, se organizam em grupos de trabalho, com cerca de 10 pessoas. Todos trabalham e todo se beneficiam. Os grupos abertos funcionam do mesmo jeito, só que com mais pessoas. Além de limpeza, a intenção era de produzir farinha, legumes, verduras, panelas de barro, artefatos em fibra e etc. “Por conta do isolamento, tem sido muito difícil produzir e não tem para quem comercializar. Não podemos nos reunir já que boa parte das famílias são lideradas por pessoas idosas”, destaca.
Com a queda nos rendimentos, os quilombolas enfrentam dificuldade para pagar contas como de energia elétrica, internet, remédios e outras. “Os aposentados precisam sair da comunidade para ir à cidade não conseguem receber porque as filas são quilométricas. Isso acaba expondo nossos idosos e as pessoas beneficiadas por programas sociais, como Bolsa Família” reclama o quilombola, informando que na incerteza de quanto tempo será necessário buscar alternativas de sobrevivência. “Vamos seguir colhendo as verduras, legumes, farinha quando possível. Agora, estamos sem norte em relação a renda para as outras coisas”.
Quilombolas da comunidade África (Foto: Acervo pessoal de Magno Nascimento)
Organização
Por iniciativa própria, mais de 40 comunidades quilombolas do Pará, decidiram fechar o acesso do público externo aos seus territórios, em municípios como Moju, Abaetetuba, Baião, Inhangapi, Salvaterra, Ananindeua, Concórdia, dentre outros.
“No geral as manifestações em grupo foram suspensas. Não se pode reunir, organizar, convocar. Temos sofrido com essa pandemia. O que impera é o medo e o temor. Os idosos são, no geral, grandes responsáveis pelas manifestações culturais, ao mesmo tempo são os principais afetados pela doença. Infelizmente, a situação é complicada”, comenta Valéria Carneiro, da Malungu, Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará.
Ela diz que as comunidades decidiram fechar acessos e montar uma espécie de guardas nas entradas, para evitar a entrada de pessoas de fora e para orientar os moradores em relação aos cuidados de prevenção à contaminação.
No Pará, há o registro de pelo menos dois casos de mortes entre quilombolas, dois tiveram resultados positivo para Covid-19 e pelo menos cinco tiveram sintomas. Sem auxílio do poder público, as comunidades estão se defendendo como podem. “A Malungu irá reunir com Ministério Público e Defensoria Pública, no sentido de tomar providências mais incisivas para que municípios e Estado tenham políticas efetivas para comunidades quilombolas. A falta de políticas públicas dentro das comunidades emperrar ainda mais a vida dentro dos nossos territórios”.
Vulnerabilidade
A pandemia e até as medidas de prevenção devem impactar da vida de pessoas negras no campo e na cidade, segundo Maria Malcher, Doutora em Geografia e militante do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa).
“Muitas mulheres negras quilombolas estão em situações complexas de ‘trabalhos precários’, ‘trabalhos não pagos – inclui os de cuidados’ e demais ‘serviços domésticos’ nas cidades. Deixar de fazer esse serviço e voltar para o quilombo é deixar de garantir o sustento das necessidades básicas de sobrevivência da família que está na cidade e da extensão familiar que fica no quilombo”.
A geógrafa questiona as dificuldades de acesso ao auxílio emergencial em áreas onde não há conexão de internet ou telefônica e critica as políticas adotadas pelo poder público.
“O acesso ao auxílio emergencial fica inviável em lugares onde a maioria das famílias não têm acesso à rede de telefonia e internet. Outra questão que agrava de forma bastante agressiva é o peso de forças anti-democráticas, explicitamente racista, fascista, machista, homofóbico e que sinalizam até para o extermínio físico da nossa população, antes e agora, quando a pandemia está alastrada”, analisa.
O Pará é o estado com mais territórios quilombolas titulados. Em 2018, a estimativa era de 141 títulos de reconhecimento definitivo de domínio. A maior base de dados sobre quilombolas está disponível no “Guia de Cadastramento de famílias quilombolas”, do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS (2010), que identificou a existência de 6.300 famílias distribuídas em 457 comunidades e em 64 municípios paraenses.
“No entanto, na nossa base de dados dialogando com o Cedenpa e a Malungu, em 2018, somente 49, dos 144 municípios do Pará têm a presença de territórios quilombolas e neste universo 331 comunidades quilombolas estão agrupadas em 189 associações quilombolas. Entretanto, somente 141 comunidades estão tituladas no Pará”, explica a geógrafa.
O #SalveCriadores é uma iniciativa que, a partir do apoio a coletivos e criadores de conteúdo das periferias de São Paulo, vai trazer reflexões e dados sobre a crise do COVID-19 e seus reflexos nas populações negras e periféricas. O projeto, desenvolvido pela Purpose, busca reforçar o importante trabalho que vem sendo feito por criadores de conteúdo e trazer pontos de vista e perspectivas que ainda não foram levantados. Os coletivos que fazem parte dessa iniciativa são o Alma Preta, o Nós, Mulheres da Periferia, a Periferia em Movimento e a Rádio Cantareira. Os conteúdos serão publicados nos canais de cada coletivo e divulgados nas redes sociais do Cidade dos Sonhos.