Política afirmativa possibilita que negros, indígenas e pessoas com deficiência mudem a história de seus núcleos familiares
Texto: Flávia Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Arquivo pessoal de Tayna Silva
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Há menos de uma semana, as políticas de ações afirmativas como as cotas no ensino superior público entraram mais uma vez em discussão nacionalmente. Antes de sair do Ministério da Educação, Abraham Weintraub retirou a portaria que estabelecia reserva de vagas na pós-graduação para a inclusão de negros, indígenas e pessoas com deficiência. A portaria já foi restabelecida e o Alma Preta conta como essa política representa a possibilidade de transformação da realidade das pessoas que fazem parte de grupos sociais e economicamente mais vulneráveis.
Mestranda em Educação, Comunidades e Movimentos Sociais pela Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba (UFSCar), Elisha Silva, professora de Ciências Biológicas, tem cinco irmãos e é a primeira pessoa do seu núcleo familiar a acessar o ensino superior. As cotas fizeram diferença para o acesso na graduação e na pós-graduação. “As cotas me fazem refletir sobre desigualdade no ensino brasileiro e sobre como a sociedade vê o pobre na universidade. Eu passei todo o ensino médio saindo de casa 5h30 da manhã para estudar numa escola técnica pública que aqui é considerada melhor, mas que tem vestibulinho. Ou seja, uma prova que fiz na oitava série, hoje equivale ao nono ano. A seleção já começou cedo”, lembra.
Um dos argumentos de quem é contra a política afirmativa é de que as cotas facilitam a entrada dos beneficiados. No entanto, filha de empregada doméstica, Elisha comenta que não tinha como competir de maneira igual com os colegas de sala, por exemplo. “Passei todo o ensino médio correndo atrás do prejuízo. Fiz cursinho e ia em todo evento grátis possível desde teatros, cinematecas, centros e na grande maioria das vezes com passe de ida e volta. Sem dinheiro para fazer um lanche, minhas colegas costumavam levar. Enfim, minha mãe fazia faxinas e ela dizia para eu estudar e me apoiava, mas ela falava que se eu não passasse, ia ter que arrumar um emprego e eu sabia que ia ser muito difícil. Enfim, passei na modalidade cotas e ainda sim nem tinha dinheiro para ir fazer a matrícula. Um amigo meu fez uma vaquinha na época. Eu me tornei uma das melhores alunas da turma. Minha média era 8.1 no primeiro ano e 8.2 no fim do curso. Mas não é sobre números. Não é só sobre mim. O vestibular é uma seleção injusta, porque não tem vaga para todo mundo”, analisa a professora.
Além disso, Elisha afirma que as cotas só representam o acesso ao ensino superior. Na universidade, as desigualdades permanecem existindo e, em seu caso, ainda há a superação da transfobia. “É sobre sonhos. As cotas podem transformar radicalmente o destino de vidas, Os dados mostram que 0,02% de trans estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% não o concluíram. As cotas são só a ponta do iceberg, porque quando falamos de desigualdades no ensino falamos de vida das pessoas, sabe. Estudar é um direito, mas na minha sala tinham menos de cinco pessoas negras. Nunca tive professor negro, nem travesti. A universidade ainda é branca e elitista. Cotas são uma pequena parcela da reparação histórica”, compartilha.
A mestranda conta ainda que nos anos de graduação dependeu de auxílio do governo e que chegou a viver com menos de R$ 50 por mês, mas que o ensino superior mudou sua vida. “Eu sofria muita transfobia, mas só consegui me expressar na faculdade. O conhecimento me deu uma profissão que agora posso exercer tanto para me dar uma vida confortável quanto para o desenvolvimento da sociedade, porque sou professora. Eu entendo meu lugar na transformação a começar pelas relações microssociais. Eu estou tentando me inserir no movimento social de pessoas trans” pontua.
Tayna Silva, estuda História na Universidade do Estado do Pará (Uepa) e, assim como Eisha, é uma mulher negra. Para a universitária, as cotas foram a maneira como ela e o irmão conseguiram acessar o ensino superior. “Acredito que cota é um grito de possibilidade. Hoje percebo que minhas movimentações só foram possíveis por esses gritos. Numa sociedade que me nega espaços e me joga ao silenciamento, tomar essa voz me trouxe a potência prática das teorias que eu lia. Cota fala um pouco sobre isso, para mim. De possibilidades”, afirma.
Filha de empregada doméstica e de um metalúrgico, Tayna afirma que a defesa da educação é um compromisso da sua geração para quem não teve essa oportunidade. “A Educação me salvou, e segue salvando de muitos abismos. Eu vejo hoje como uma enorme mola transformadora. É onde busco forças para acreditar, de verdade. Eu cresci ouvindo que educação é o caminho, coisa do tipo ‘estuuuuda, menina, estuda para não passares por isso’.”, recorda.
Por conta da pandemia da Covid-19, a formatura foi adiada em alguns meses, mas isso também não impede Tayna de sonhar com o futuro diploma. “Tenho avistado novos sonhos, novas possibilidades. Ainda estou escrevendo a monografia, esse início da vida acadêmica, mas eu quero muito chegar no doutorado em direitos humanos. Também tenho um enorme sonho de me tornar produtora cultural, algo mais ligado ao audiovisual que é minha praia. Quero trabalhar, impulsionar novas e cada vez mais vozes, principalmente aqui em Icoaraci. Galera aqui é genial e às vezes nem se percebe. Que eu possa também ecoar essas vitórias da educação marcadas no meu corpo. Em movimentos sobretudo coletivos, múltiplos. Se de alguma forma eu conseguir fazer isso, eu já me dou por satisfeita”, planeja a jovem, que é moradora de um distrito de Belém.
* Foto interna: Arquivo pessoal de Elisha Silva.