Pesquisadora baiana e pós-doutoranda diz que não quer ser a única mulher negra a conquistar esse patamar e espera que outras também possam se destacar
Texto: Guilherme Soares Dias | Edição: Nataly Simões | Ilustração: Alma Preta
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Filha da pedagoga Edna e do Engenheiro Civil Jarandi, Jaqueline Goes, 30 anos, que cresceu na região do Vasco da Gama, em Salvador, na Bahia, se destacou por ser uma das brasileiras a sequenciar o genoma da Covid-19. Essa leitura ajuda no acesso a mais informações sobre o vírus e é uma contribuição decisiva para os estudos sobre o novo coronavírus. “Entendemos a ordem exata da base do DNA e isso permite saber tudo que vai acontecer com a estrutura do vírus e que regiões dele podem ser utilizadas como alvos de ataque”, explica.
A pesquisadora conta que os pais conseguiram furar o bloqueio e ascender socialmente por meio da educação. “Tanto eu quanto meu irmão fomos muito bem instruídos e tivemos um investimento muito forte na parte educacional, não tínhamos luxo em casa, mas meus pais não mediram esforços na educação”, relata.
Jaqueline estudou em escolas particulares no Ensino Fundamental, fez o Ensimo Médio no antigo Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) da Bahia e fez graduação em Biomedicina pela Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública. Durante a faculdade, fez o processo seletivo para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e começou a fazer iniciação científica em 2009. Ficou por lá três anos desenvolvendo diversos projetos até ingressar no mestrado em Biotecnologia em Saúde e Medicina Investigativa na Fiocruz, que concluiu em 2014. Entre as experiências, fez experimentos em um laboratório da instituição em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e cursou o doutorado em Patologia Humana e Experimental, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em associação com a Fiocruz. O curso foi concluído em 2019 e estudou doenças como zika, chicungunha, febre amarela e dengue.
Jaqueline participou do programa Ciência sem Fronteiras e fez pesquisa na Inglaterra para se aperfeiçoar no sequenciamento em MinION. Ela passou seis meses no país europeu. A cientista já era uma das cinco pessoas que trabalhavam com essa tecnologia no Brasil e tornou-se referência na utilização do equipamento. “Isso foi abrindo espaço para conhecer outras pessoas e publicar diversos artigos durante o doutorado”, afirma. Ela venceu o Prêmio Gonçalo Muniz e sua tese de doutorado foi escolhida como a melhor pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
No começo de 2020, Jaqueline foi para São Paulo fazer o pós-doutorado com o grupo de pesquisa no Instituto de Medicina Tropical. “Inicialmente o projeto era relacionado à dengue, mas o Instituto Adolpho Lutz me convidou a fazer o sequenciamento do genoma da coronavírus”, afirma. O sequenciamento desvendou o mapa do segredo do vírus, mostrando o caminho que percorreu por meio das informações que carregam no genoma.
Ao ser questionada sobre como é ser uma cientista negra, ela responde: “A vida toda trabalhei em pesquisa. Comecei a dar aula na faculdade. Em termos acadêmicos não tem diferenciação para outras pessoas. É um meio muito polido. É evidente que por ser mulher e preta, desperta surpresa”, pontua. Esse sentimento era maior à medida que o trabalho de Jaqueline ganhava mais destaque e era publicado na Revista Science, referência para a comunidade científica. “Não é fácil não ter referências de cientistas mulheres negras ou de homens negros. Rompi barreiras para chegar até aqui”, considera.
A pesquisadora ressalta que as políticas de cotas e os investimentos em educação feitos por governos anteriores fizeram pessoas negras e periféricas chegarem à faculdade e à pós-graduação. “É um fenômeno novo, há uma mudança no perfil dos estudantes que estão na graduação”, considera. Pelo lugar de destaque que alcançou a própria Jaqueline tornou-se referência na área científica. “Não consigo me ver nesse papel, continuo sendo a mesma Jaqueline, com mais projeção. O conselho que sempre dou é que não foi fácil, mas não desisti. Existe uma corrente contrária em todo esse processo persistir foi o que me fez chegar nesse patamar”, pondera.
A cientista lembra que não quer ser a única mulher negra a conquistar esse patamar e que espera que outras também possam se destacar. “Até que isso seja lugar comum, não seja só inspiração, mas factível”, afirma. Segundo Jaqueline, a população negra tem uma energia que vem da ancestralidade, da luta dos antepassados. “Não é algo que não tem como explicar, situações que vivi e consegui resistir, vem dessa arte do povo preto. Outras pessoas não teriam aguentado”, salienta.
Isso faz com que até hoje a pós-doutora, referência por ter sequenciado o genoma do coronavírus, tenha que se provar diariamente. “Nós sofremos muito mais por sermos pretos, temo que nos dedicar mais para sermos vistos. O que eu levo é ser duas vezes mais dedicada, mais interessada, para que não caia no cantinho do esquecimento. São coisas que são difíceis de tirar, mesmo sabendo da competência”, conclui.