Em tese de doutorado, Adilson Paes de Souza usa experiências pessoais e relatos ouvidos de outros policiais para analisar a origem da letalidade das forças de segurança pública
Texto: Juca Guimarães I Edição: Nataly Simões I Imagem: PMSP
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O tenente coronel aposentado Adilson Paes de Souza possui quase quatro décadas de experiência na Polícia Militar do Estado de São Paulo, onde ingressou em 1982, aos 17 anos, no curso em horário integral, durante três anos, para a formação de oficiais da PM.
Assim como outros estudantes em formação, ele sofreu trotes, passou privações e sustos. Segundo Souza, os alunos eram chamados de “bichos” e “vermes” durante os treinamentos e atingidos por bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. O objetivo era enraizar os princípios do militarismo, com o estímulo da violência e do cumprimento das regras. A chamada “Cultura do Guerreiro”, focada em combater e destruir o inimigo.
Como oficial da PM, Paes trabalhou na Tropa de Choque a partir de 1985 e viu de perto a exaltação aos policiais que matavam, sobretudo nas periferias. Na Tropa, segundo ele, também teve um rito de iniciação com xingamentos de “bichos” e “vermes malditos”, eletrochoques (exatamente como são narradas as torturas sofridas pelas vítimas da ditadura) e golpes de cassetetes.
Depois de aposentado, o tenente coronel, que é formado em Direito, se dedicou à carreira acadêmica na psicologia e aos direitos humanos, pesquisando sobre a violência e a letalidade policial. Souza defendeu a dissertação de mestrado em Direitos Humanos na USP (Universidade de São Paulo) em 2012. No estudo, ele analisa a educação em Direitos Humanos na Polícia Militar de São Paulo. A pesquisa originou o livro “O Guardião da Cidade”, uma referência para o estudo aprofundado das ações violentas das forças policiais, sobretudo contra negros e pobres.
Em agosto de 2020, o tenente coronel aposentado defendeu sua tese de doutorado em Psicologia e Direitos Humanos, também pela USP, chamada “Policial que mata: Um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares no Estado de São Paulo”. Para Souza, o racismo estrutural impacta na formação do policial e falta um processo educacional para combatê-lo.
“A relação entre pessoas, dentro e fora das instituições, é permeada por esse racismo. Falta um processo, com viés na educação, para combater esse racismo estrutural, para enfraquecê-lo e erradicá-lo da instituição para que os policiais atuem dentro do limite que a lei permite atuar. O policial deveria seguir a Constituição e aplicar o princípio da impessoalidade, ou seja, tratar todas as pessoas da mesma maneira, sem qualquer tipo de discriminação. O treinamento, do jeito que está, não aborda adequadamente a questão do racismo e, ao não abordar, permite que ele persista e se fortaleça no seio da instituição”, considera.
Em entrevista concedida ao ao Alma Preta, o ex-tenente coronel da PM fala sobre os estudos realizados no campo da psicologia e dos direitos humanos, o racismo presente na polícia e suas consequências. Confira:
Alma Preta: O senhor diz que a corporação e a disciplina da polícia se tornam o superego da psique do policial. Desse modo, ela determinaria os seus comportamentos e decisões. No que se refere a essa análise?
Adilson Paes de Souza: Eu pesquisei muito os estudos do psiquiatra francês Christophe Dejours, uma referência no tema da psicologia do trabalho. A teoria da psicodinâmica do trabalho é uma das que eu utilizo para explicar na minha tese esse ambiente e o sofrimento que advém desse ambiente complicado em que vive o policial, assim como as respostas que o policial dá para todas essas adversidades enfrentadas. Dejours afirma que a hierarquia e a disciplina, que são pilares de todas as organizações, funcionam como um espécie de freio para a conduta. Em relação à PM, cuja estrutura é a mesma que a do exército, por exemplo, existem normas que proíbem a violação de Direitos Humanos, mas na prática existem normas de convívio, estabelecidas pelo grupo e toleradas pela organização, que estabelecem, de fato, como deve ser. Me refiro à subcultura policial e o efeito na morte. Têm ocorrências que extrapolam esse limite e o policial acaba preso porque coloca em risco o grupo e as práticas que esse grupo realiza. Nesse sentido, a disciplina e a hierarquia exercem o papel do superego.
AP: O treinamento policial tem como procedimentos a humilhação e a tortura dos jovens aspirantes. Isso o senhor vivenciou nos anos 80 e ouviu relatos nos anos 90 e nas décadas seguintes. Qual o impacto disso na relação do policial com ele mesmo e com a sociedade?
Souza: O treinamento policial não é 100% isso [humilhação e violência]. Acontece que, dentro da cultura do guerreiro,e na prática de formar um novo guerreiro, essas atitudes violentas são empregadas. Muita gente que aplica esses métodos não tem consciência do que está aplicando. Ao produzir sofrimento nas pessoas, as pessoas podem desenvolver mecanismos de defesa para tentar lidar com esse sofrimento e restabelecer o equilíbrio intrapsíquico. Uma das possíveis expressões desse mecanismo de defesa é matar alguém, eliminar alguém ou matar a si mesmo, o suicídio. É óbvio que isso acaba influenciando no desempenho do policial e no relacionamento com ele mesmo e com a sociedade.
AP: O racismo, como parte estrutural da sociedade, resulta como impacto na formação do policial ou a falta de uma linha forte e constante de treinamento no combate ao racismo faz com que aumente as tensões e a violência contra a população negra?
Souza: Sim, por ser estrutural, o racismo impacta na formação do policial. A relação entre pessoas, dentro e fora das instituições, é permeada por esse racismo. Falta um processo, com viés na educação, para combater esse racismo estrutural, para enfraquecê-lo e erradicá-lo da instituição para que os policiais atuem dentro do limite que a lei permite atuar. O policial deveria seguir a Constituição e aplicar o princípio da impessoalidade, ou seja, tratar todas as pessoas da mesma maneira, sem qualquer tipo de discriminação. O treinamento, do jeito que está, não aborda adequadamente a questão do racismo e, ao não abordar, permite que ele persista e se fortaleça no seio da instituição.
AP: O policial negro dentro da instituição é forjado para não ter uma identidade racial?
Souza: Não saberia dizer se ele é forjado para não ter um identidade racial, mas há casos de racismo dentro da polícia, há casos de racismo dissimulado, com brincadeiras e apelidos que realçam características raciais e há casos de tensões entre alunos e entre alunos e professores advindo do racismo.
AP: Na sua defesa de tese, o senhor disse que o comando da equipe que atua nas ruas nem sempre está na mão do policial com maior hierarquia no grupo. Muitas vezes esse comando é do policial que mata e quem o contraria pode até morrer. Como essa subcultura se desenvolve na polícia?
Souza: A subcultura policial é mais um mecanismo de defesa. Um mecanismo de defesa coletivo. O grupo se fecha nas suas próprias regras. Nesse sentido, quando o grupo se fecha a hierarquia formal estabelecida na polícia nem sempre conta. De repente, um outro policial tem as características para ser o líder desse grupo e ele será, de fato, o comandante desse grupo e vai ditar as regras e como se deve agir.
AP: Os policiais que estão presos, geralmente, dizem que o crime deles foi ter matado. O senhor afirma que essa percepção é equivocada e quem pensa assim vai acabar matando novamente. Por que?
Souza: Eles não estão totalmente equivocados, mas se eles persistirem com essa análise que a ocorrência deu errado, foram descobertos e foram presos, eles não vão ter a percepção de todo o processo que permite que essa letalidade aconteça e o quanto eles foram manipulados. Sem essa percepção de como e o quanto foram manipulados, eles terão grandes chances de praticar esses atos novamente. Eles não percebem que foram manipulados pela instituição. Quando a pessoa percebe que foi tratada como objeto descartável, ela tem condições, com esse choque de realidade, de desenvolver um espírito crítico e evitar que isso se repita.
AP: A violência do cotidiano policial se volta contra os próprios policiais. São, em média, três suicídios por mês, de acordo com dados de 2018 da Ouvidoria, fora os agravamentos psicológicos acumulados ao longo dos anos. Isso acaba potencializando ainda mais a violência policial contra as periferias e os negros, pois não existe um acompanhamento adequado da saúde psíquica do policial?
Souza: Existem as normas, mas elas não se traduzem no cotidiano do tratamento psicológico do policial. Sem contar que falta também o tratamento preventivo. Tem policiais que não relatam que estão com problemas psiquiátricos porque podem sofrer represálias do grupo e da própria instituição. São chamados de “vagabundos”, “covardes”, que “não querem trabalha”’, etc. Eles não podem compartilhar essas experiências dolorosas com ninguém e a situação tende a se agravar. O tratamento psicológicos dos policiais não é o adequado, inclusive, a sociedade não tem o direito de acompanhar a forma como o tratamento foi instituído, porque ele foi concebido de determinada maneira e como ele é executado. Eu pergunto: Se a sociedade não pode acompanhar nada, como saberemos se ele é adequado?
Conversei com policiais para escrever a minha tese e ouvi que a norma é só no papel, no dia a dia é diferente. Nesse sentido, falta apoio psicológico para o policial. Isso complica muito o desempenho da função do policial, pode trazer sofrimento, transtorno e adoecimento, além de que ter um policial adoecido, desequilibrado na rua e portando uma arma é um risco para toda a sociedade.