Em artigo de opinião, Juliana Correia critica o embranquecimento das escolas de samba do Rio de Janeiro
Texto / Juliana Correia I Foto / Revista Manchete
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Em 1976, Vera Lucia Souza era a rainha da bateria do Grêmio Recreativo e Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro. Nascida e criada no morro que empresta o nome à escola, ela conquistou também o título de melhor passista do carnaval de 1978. Roxinha, como é mais conhecida no universo carnavalesco, foi ainda diretora da ala de passistas da agremiação ao longo dos anos 2000.
O morro do Salgueiro fica na Tijuca, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o cantor, compositor e pesquisador Nei Lopes, seus primeiros moradores chegaram no fim do século XIX, atraídos pela possibilidade de trabalho nas casas das famílias burguesas e nas fábricas do entorno. Vieram, em sua maioria, do sul de Minas Gerais, onde extensas lavouras de café concentraram africanos escravizados, oriundos da região Congo-Angola. Com a abolição da escravatura, agora os negros subiam as colinas da Tijuca, carregando os seus saberes ancestrais – entre eles, as suas tradições musicais, como o caxambu/jongo, a folia de reis, o calango.
Foi nesse caldeirão cultural que nasceu o G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. Fundado no dia 5 de março de 1953, é fruto da junção de três escolas de samba do próprio morro que apostaram na união para potencializar a sua força no carnaval carioca. Esse breve panorama é para auxiliar a reflexão sobre um tema delicado, porém urgente, que é o racismo nas escolas de samba.
Em primeiro lugar, é preciso entender que o racismo não é doença, nem burrice, e sim uma estrutura de origem histórica que garante aos brancos o monopólio sobre os recursos vitais da sociedade (políticos, econômicos, tecnológicos, etc). No caso do Brasil, a atenção deve ser redobrada: eis uma sociedade forjada sobre séculos de sequestro e escravidão de povos africanos, que não promoveu políticas de reparação aos negros e indígenas. No lugar disso, promoveu políticas de branqueamento, incluindo aí o investimento na imigração européia (sob o argumento da necessidade de mão de obra qualificada para o trabalho fabril), e se construiu como Estado Nação com base em um projeto político-ideológico que propagou o mito da democracia racial.
Vivemos em uma sociedade que fomentou o sentido de pertencimento a uma unidade nacional se utilizando do culto à mestiçagem, como se o cruzamento entre as raças garantisse a harmonia nas relações sociais. Desta forma, introjetou no imaginário coletivo que não há branco, nem negro, nem indígena pois são todos brasileiros. E assim nega o racismo como base para as suas assimetrias sociais.
Em segundo lugar, é preciso entender que o samba é um complexo cultural de matriz negro-africana, composto por música, dança, culinária, filosofia, entre outros elementos. Foi proibido via o código penal de 1890, ao lado da capoeira e dos cultos afrorreligiosos, numa nítida estratégia para o controle da subjetividade negra. As primeiras escolas de samba teriam sido fundadas entre as décadas de 1910 e 1920. Como bem ensinaram Abdias do Nascimento e Beatriz Nascimento, tais instituições devem ser compreendidas como organizações políticas uma vez que eram o resultado do aquilombamento de negros e negras, em constante articulação e enfrentamento à marginalização lhes atribuída pela sociedade.
Foi justamente na Era Vargas (1930-1945), período da construção do Estado Nacional, que o samba saiu do código penal e virou símbolo nacional. As produções culturais dos povos violados ao longo da história foram então apropriadas como elementos de uma identidade nacional. No entanto, ainda de acordo com Abdias, é importante lembrar que neste processo não houve preocupação com o sentido daquelas produções culturais em si. Sem incentivo e valorização de suas raizes e fundadores/protagonistas, tratou-se apenas de torná-las palatáveis ao consumo em larga escala. Desta forma, desqualificam ainda hoje inclusive qualquer tentativa de reivindicação sobre a autoria, posto que tudo passou a ser patrimônio nacional. Eis uma das formas como opera o genocídio do povo negro.
Genocídio é o extermínio sistematizado de um povo. Além do tombamento dos corpos negros pelo uso de armas de fogo, a hierarquização dos saberes e o apagamento da história, cultura e ancestralidade negro-africana também são formas desse extermínio sistemático. Abdias do Nascimento nomeou-as como genocídio cultural. A partir do momento em que a dança do samba é banalizada sob o argumento de que uma rainha de bateria não precisa dominar tal arte, por exemplo, se contribui para isso.
O Samba Abstrato
Cresce o número de mulheres brancas invadindo os lugares de destaque antes ocupados pelas negras nas agremiações carnavalescas. Apesar de tais instituições também serem designadas como “escolas de samba”, por incrível que pareça, às brancas sequer é exigido o domínio da arte da dança do samba, mesmo se o cargo em questão for o de musa ou rainha da bateria. Pode até parecer besteira, mas não é. Já entendemos como opera o genocídio do povo negro. Banalizar um dos principais saberes ancestrais de matriz negro-africana que, juntamente ao canto e ao ritmo, por exemplo, compõe o complexo cultural que constitui o próprio samba, é, no mínimo, criminoso.
Diante disto, há alguns anos, nasceu uma página no Facebook intitulada Samba Abstrato. Por lá, as musas em pleno exercício de abstração nos ensaios e desfiles de carnaval são apresentadas democraticamente, havendo inclusive uma votação online para eleger a mais abstrata de todas daquele ano. Em sua avassaladora maioria, são mulheres brancas, sem vínculo histórico ou laço afetivo natural com a agremiação ou com o território no qual a escola se estabeleceu. Repercute a informação de que pagam às escolas pelos postos de destaque que ocupam. Várias delas, sem o mínimo sequer de coordenação motora, não escondem o empenho na auto-promoção, seja por meio das próprias declarações, seja pela ostentação de figurinos luxuosos.
Apesar do tom jocoso das publicações e dos comentários hilários dos mais de 16mil seguidores, a página é um nítido manifesto contra o branqueamento das escolas de samba. Há irreverência, mas o assunto é tão sério que, frente ao sucesso do Samba Abstrato, seus administradores passaram a receber ameaças de processos judiciais e até de morte, numa nítida tentativa de silenciamento à página, logo, à sua potência na promoção da discussão sobre a questão racial no Brasil. A internet é um fenômeno de grande alcance e os desfiles das escolas de samba, há tempos, são conhecidos como “o maior espetáculo da Terra”. Promover a crítica racial pode até nem atrapalhar muito os negócios dos barões que controlam os camarotes, as presidências, as diretorias e a Liga Independente das Escolas de Samba, mas pode impactar o campo simbólico, fundamental ao imagético, ao poético, ao encantamento do público em geral, desde o tímido espectador até o mais animado folião.
São muitas as discussões que o assunto suscita, mas acredito que um primeiro ponto a se pensar é que a questão está para muito além da tal representatividade. O racismo é gritante no carnaval e isso não se resolve apenas com um enredo afro. Afinal, quem gerencia a festa? Desde a diretoria das agremiações, passando pelas mídias que fazem a cobertura oficial do evento, patrocinadores, jurados e instâncias públicas como
a prefeitura (laica ou não!), quem controla as cifras e quem determina o que deve ou não continuar existindo dentro da cultura da escola de samba?
Partindo deste ponto, em que medida as agremiações andam contribuindo para o genocídio do povo negro na diáspora brasileira? Até quando uma instituição fundada por negros seguirá funcionando a partir de um eixo civilizatório ocidental, eurocentrado, que desqualifica os saberes de seus fundadores? Até quando haverá mulheres brancas e totalmente alheias às comunidades, em posições de destaque? Quem determinou que não precisa sambar?
A imagem de Roxinha à frente da bateria do Salgueiro ensina um bocado sobre corporeidade, memória, ancestralidade. É um retrato da dança e do ritmo negros juntos, inseparáveis, em subversão aos imperativos de uma sociedade extremamente racista. É o registro da potência de um corpo que transcende o individual porque é também coletivo, repleto por narrativas que atravessam espaços e tempos, cruzando-se na luta pela sobrevivência na diáspora negra. Um corpo-templo capaz de manifestar o espírito e, por isso, fazer da dança do samba também uma forma de louvação aos ancestrais. O corpo negro é veículo de expressão de uma herança que remonta aos antigos impérios africanos. Nele estão impressas insígnias reais, visíveis nos gestos, na ginga, na cadência.
Portanto, cuidado ao ouvirem por aí que “não é preciso sambar”.
O genocídio do povo negro segue em curso.