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Sem sacrilégio

23 de abril de 2020

Em 23 de abril é comemorado o dia de São Jorge, santo católico, e do guerreiro Ogum, nas religiões de matriz africana

Texto: Juliana Correia | Imagem: Márvila Araújo

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Aqui no Rio de Janeiro, o dia 23 de abril é comemorado com uma série de eventos. Consagrado ao santo católico São Jorge e nas religiões de matriz africana ao guerreiro Ogum, provoca forte comoção nas pessoas. Não sou devota, mas acho bonita a movimentação: a moda desfilando nas estampas das camisas e vestidos e até nos adesivos dos automóveis, a multidão se acotovelando nas igrejas e os tambores ecoando pelos terreiros. O mais bacana é quando tudo isso se encontra num mesmo espaço, independente da religião, da roupa e do transporte.

Era o ano de 2014. Peguei o trem sentido Santa Cruz. Meu destino era Padre Miguel. Sem sacrilégio. Desci da estação e caminhei até o Ponto Chic, a parte do bairro onde a música toma conta das ruas. Lembrei do profeta Moisés quando precisei atravessar um mar de gente para alcançar a Praça da Vela. E haja gente! Não. Não era um mar. Era sim um oceano de pessoas, transbordando as ruas por conta do santo guerreiro e/ou do orixá senhor do ferro.

Enquanto caminhava, me impressionava com a beleza do lugar e automaticamente pensei nas cortes africanas trazidas para cá nos tempos da escravidão – a beleza que me refiro não se limita apenas à estética. Pensava em toda herança cultural transplantada por esse triste período da história do Brasil. A ginga ao andar, a forma de mexer o quadril durante as danças, as gírias, os batuques, as comidas vendidas pelo Ponto Chic seriam traços de quais realezas?

Vários ritmos como o charme e o funk no último volume em diferentes trechos ao longo da rua principal. E as pessoas dançando, óbvio! Aquela espontaneidade em se expressar que infelizmente não é possível encontrar em todos os lugares. Até que o milagre acontece: encontro a Rua M. Felicidade estampada na cara ao ver e ouvir a rapaziada do grupo Autonomia e tanta gente querida que conheci, graças às minhas andanças pelas rodas de samba, hoje já não mais tão frequentes.

Os músicos Rogério Familia, Paulo Roberto Abidu, Junior Silva, Marcelo Gomes e Alexandre Chacrinha garantiam o ritmo enquanto outros sambistas caprichavam na cuíca e no banjo formando uma das melhores rodas de samba que já presenciei. Não tive dúvida, recebia uma bênção. Ao redor, durante os intervalos, pessoas comentavam sobre a emoção (e o sono!) por terem assistido a alvorada em alguma igreja ou por terem virado a madrugada na curimba. E todos voltavam a cantar, a beber e a comer juntos quando a batucada seguia. Comunhão pura! A imagem do cavaleiro destruindo o dragão reluzia em tatuagens, cordões e anéis ao mesmo tempo em que o vermelho ou o azul predominavam na indumentária.

Enquanto as melodias desenhavam as letras dos sambas que chamamos “lado B” – por serem canções menos conhecidas do público em geral, tanto por serem muito antigas quanto por nunca (ou quase nunca) terem sido intensamente executadas pelo rádio – músicos e público mantinham o coro no gogó, numa sintonia divina que, por vezes, pela quantidade de mãos para o alto e olhos fechados, fazia crer que estavam em oração.

Ao final, as pessoas foram se retirando devagar. Cada uma partiu com sua crença, sua forma de ver e interpretar a vida. Mas percebi que continuamos todos juntos, independente da data, da crença, da forma de ver e interpretar a vida.
É que a roda de samba tem o poder de agregar, nesse sentido. A música é a verdadeira Deusa. Do mesmo jeito que uma determinada canção pode emocionar meu espírito, emociona outras pessoas que só conheço de vista (ou nem de vista conheço). E ali me reconheço. Somos várias contas numa mesma guia.

E quem dera assim sempre fosse. Segue em minha memória o registro do dia em que vi o santo católico da Capadócia e o ancestral iorubano divinizado serem devidamente lembrados e reverenciados num mesmo lugar porém sem apologia a uma supremacia branca, normalmente mascarada pelo sincretismo.

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