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Entre Brasil e EUA, o tempo insiste em nos matar

3 de junho de 2020

A jornalista e atriz brasileira Laila Garroni, que vive em Nova York, relata sua percepção sobre o genocídio da população negra nos dois países e a onda de manifestações antirracistas

Texto: Laila Garroni* | Ilustração: Eduarda Moiano

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Como contar o tempo quando ele insiste em passar, mas sem mudar em nada a realidade dos pretos? Como contar o tempo quando a morte do meu povo é unidade de medida? São sete anos morando em Nova York, 77 dias em quarentena sozinha e 100 dias acumulando a última onda de luto de pessoas negras assassinadas pela polícia no Brasil e nos Estados Unidos.

São 811 dias sem Marielle Franco, quase 5 anos dos 111 tiros que mataram 5 jovens cheios de sonhos, potência e melanina. E o Amarildo, ficou quantos dias sumido? Dos 80 tiros sei que fazem um ano e três meses.

Em 1994, Racionais MCs já cronometrava a morte de um jovem preto a cada 4 horas só em São Paulo, e o relógio de hoje nos fala que, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Entre tantos tics tacs, que é o som regente também de uma bomba prestes a explodir, nós pretos continuamos a matemática iniciada por Marielle: quantos ainda vão precisar morrer para que essa guerra acabe?

Quando se vive nessa fenda entre dois países – que apesar da diferença de fuso horário parecem sincronizados na frequência do genocídio contra os de pele escura, a gente por vezes tem que mudar a relação com o tempo e o contá-lo a partir de sua qualidade. Isso também é tática de sobrevivência. Me vi, nas últimas semanas, checando meus sinais vitais emocionais e controlando através deles como interagir com o mundo externo, principalmente com as notícias.

Quando a Marielle foi assassinada, eu corri para o primeiro protesto que aconteceu aqui, na Union Square, em Manhattan. Lembro-me de pegar um megafone e deixar derramar ali mesmo a dor que eu estava sentindo. Lembro-me também de avisar, a 810 dias atrás, que essa dor não era novidade para quem é preto (por isso me preocupa isso ainda soar como algo novo para alguém). Também lembro dos afetos que criei com outras pessoas negras nesse mesmo dia. As amizades e conforto que aquele ato me deu são suas sementes para mim.

Há dois dias tive meu primeiro contato com um protesto contra a injustiça no caso de George Floyd, assassinado há 8 dias em Minnesota. Falo “contato” porque o relógio dos meus sinais vitais emocionais não me deu tempo para participar de fato de nenhum dos atos que acontecem sem cessar desde o acontecido. Se a vida de um homem negro americano se torna descartável nas mãos da polícia aqui, não me permito nem imaginar o que ela faria com a minha, uma mulher, negra e imigrante.

Há cerca de 48 horas recebi o privilégio de um dos atos passar pela minha janela. Corri pra pegar qualquer coisa que fizesse barulho e gritei. Gritei de raiva, gritei de dor, gritei de esperança. Gritei do terceiro andar procurando pela cura que participar do ato pela Marielle me trouxe 810 dias atrás. E encontrei um pouquinho. Mas o ato passou e por minutos fiquei andando de um lado para outro dentro de casa, tentando negociar com o meu relógio minutos extras, de repente só o tempo de andar duas quadras? Todos os pedidos foram negados.

Faz uma hora e meia que saí de casa para ir no mercado. Por cima do macacão colorido, sem intenção alguma, coloquei uma jaqueta jeans que traz um gigante punho negro e feminino cerrado pintado nas costas. A três quadras do mercado, sorri num misto de felicidade com ‘ah, como a vida é irônica e eu ingênua’ quando avistei uma grande aglomeração de pessoas com faixas, camisetas e máscaras, gritando por justiça. Tentei tirar fotos, mas meu relógio me disse que não tínhamos tempo para isso. O tempo que tinha sido me dado foi só o de gritar, me ajoelhar e buscar meu poder imitando o gesto que eu trazia estampado nas minhas costas.

Eu sei que não foi minha ingenuidade que me levou a achar que eu poderia ir normalmente ao mercado no fim da tarde exatamente no mesmo dia em que a polícia determinou um toque de recolher para as 20h – na cidade que nunca dorme, veja bem. Também não foi o acaso que escolheu aquela jaqueta. Hoje eu aprendi que se você continua se movendo mesmo com medo, mas no seu tempo, é capaz de você parar de cara a cara com aquilo que você mais teme. Foram só 30 minutos, mas qual a importância da quantidade do tempo? Talvez amanhã eu consiga as minhas duas quadras.

* Laila Garroni é jornalista e atriz brasileira radicada em Nova York. A intelectual e artista divide seu lugar de fala entre texto, cinema e poesia.

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