A branquitude insiste em conscientizar a naturalização da violência contra a população negra, mas nós resistimos em resgatar a memória da nossa opressão e da nossa luta
Texto: Tatiana Oliveira | Imagem: Joe Raedle/Getty Images
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Há 520 anos tentamos respirar, mas continuamos sob os açoites. Não temos nem um dia de trégua!
Todo dia pela manhã, abro o Facebook e me deparo com pelo menos três mortes relacionadas aos amigos da minha rede. São pelo menos três vezes que cumprimento amigos dizendo: “meus sentimentos”, pois de fato eu sinto, lamento muito cada vida perdida. E em sua grande maioria são vidas negras. As condições de morte são diversas, mas as mortes que mais me sufocam são as execuções sumárias do Estado Brasileiro e as humilhações diárias e cotidianas que a população negra sofre.
Somos reincidentemente humilhados, pisoteados, executados, e isso é feito com requintes de naturalização, afinal para a branquitude hipócrita “black lives matter” nos EUA, mas no Brasil as vidas negras não importam, e no máximo essa branquitude coloca uma foto ou algum amigo negro na sua rede social pra ficar “bonito na fita” e dizer que é antirracista.
Pisam em nosso pescoço, nos espancam até lesionar nosso cérebro ou quebrar nossa tíbia, arrastam nosso corpo pelo asfalto, prendem nosso companheiro que cuidava dos nossos filhos levando nosso caçula a se afogar na piscina, abandonam nosso filho de quatro anos no elevador repetidas vezes até que ele morra ao despencar do prédio.
A hipocrisia da branquitude é aquela que mantém a tolerância com as pessoas negras desde que elas se coloquem em seu lugar, é aquela que diz que vidas negras importam, mas que dão espaço em horário nobre para o pedido de desculpas da branquitude que errou e precisa ser “limpa” de seus pecados. Afinal, era só o filho da empregada! Era só uma lésbica! Era só um morador da periferia! Era só um jogador de futebol! Era só mais um negro ou mais uma negra!
Lélia Gonzalez falava sobre as noções de memória e consciência. Compreendendo enquanto consciência o discurso ideológico como lugar do desconhecimento, da alienação, do esquecimento, do saber e do encobrimento. E a memória como um lugar de inscrições onde se restitui a história não escrita, o local emergente da verdade, estruturada como ficção. Assim, o que é excluído pela consciência, é incluído pela memória. Ou seja, a branquitude insiste em conscientizar a naturalização da violência contra a população negra, mas nós resistimos em resgatar a memória da nossa opressão e da nossa luta.
Minhas filhas, que têm seis e oito anos, já entenderam que somos negras e que vivemos em um mundo racista. Elas já me questionam sobre as mortes e humilhações que nosso povo sofre. Ultimamente isso tem me corroído por dentro, porque é difícil lidar com isso, por mais que eu estude e compreenda os motivos pelos quais o racismo é estruturante da nossa sociedade e que a naturalização da violência contra nós é feita dia após dia, sobre nossas jugulares, nossos corpos, nossa expectativa de vida. Eu preciso admitir que é um fardo imenso ter que explicar tudo isso pra elas, na medida em que elas possam compreender e dentro dos seus limites de entendimento.
Mas, apesar de todo esse sufocamento, há 520 anos lutamos para respirar. Contra o racismo, o escravismo, contra as execuções e humilhações que sofremos. Somos valentes, descendentes de Zumbi dos Palmares, de Dandara, Teresa de Benguela, Lélia Gonzalez, Chica da Silva, Tia Ciata, Clementina de Jesus e tantos outros conhecidos ou anônimos que lutaram pelo pão de cada dia, pela garantia de direitos básicos, para respirar e seguir em frente, mesmo sendo sufocados pelo racismo e toda hipocrisia e perversidade da branquitude.
No dia 7 de julho de 1978 – dias antes do meu nascimento – nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em um protesto que reivindicava fim da violência policial contra a população negra, foi criado o Movimento Negro Unificado (MNU).
A partir do Primeiro Encontro de Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas (EMNLC), que ocorreu na República Dominicana, de 19 a 25 de julho de 1992, foi criada a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora. E também foi definida a data de 25 de julho para celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra, Afro-latino-americana e Afro-Caribenha.
Nossos passos vêm de longe! Há 520 anos praticamos a quilombagem e a filosofia ubuntu, por uma questão ancestral e também de sobrevivência.
Para Beatriz Nascimento: “O Quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro e também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso, e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias de destruição.”
De acordo com Henrique Cunha Júnior: “No Ubuntu, temos a existência definida pela existência de outras existências. Eu, nós, existimos porque você e os outros existem; tem um sentido colaborativo da existência humana coletiva”. Refletindo assim “a organização de uma filosofia do ser humano, da coletividade humana e da relação desses seres com a natureza e o universo”.
Por isso, mesmo com o silêncio ensurdecedor das grandes redes de comunicação, estamos em marcha. A cada 25 de julho e 20 de novembro marchamos por nós, pelos mais velhos e pelos mais novos. Nos unimos pela nossa comunidade. E é por conta disso que resistimos e tomamos fôlego para nossa resistência e reexistência nessa sociedade estruturalmente racista.
Tatiana Oliveira é jornalista, doutoranda na Universidade de São Paulo, professora o Celacc/USP e ativista da Rede Antirracista Quilombação.