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Francia Márquez, mulheres negras e uma ode à desobediência

Francia Márquez, vice -presidenta da Colômbia, convoca as mulheres negras à desobediência e a construção de uma agenda global contra o machismo e o racismo

Texto: Munah Malek | Foto: Luna Costa/MIR

Francia Márquez e comitiva brasileira.

Foto: Foto: Luna Costa/MIR

4 de agosto de 2023

Uma mulher negra de tranças presas em um coque lateral adentra o espaço do auditório repleto de outras mulheres, assim como ela, negras de escuras tonalidades contrastando com os coloridos de suas roupas e turbantes. Com passos firmes e equilibrados em um fino sapato de salto, ela passa por um altar onde frutas, flores e bebidas estão dispostas em oferecimento aos orixás, co anfitriões da cerimônia. A mulher que entra aplaudida de pé é Francia Márquez Mina, advogada, defensora ambiental e vice-presidenta da Colômbia, hoje uma das maiores lideranças negras do mundo.

Francia Márquez abriu o Encontro Internacional de Mulheres Afrodescendentes: Tecendo Desde a Raiz relembrando o Primeiro Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe, a partir do qual se instituiu o dia 25 de julho como o Dia da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha, em 1992. Hoje, 31 anos depois, quisemos dar a razão a essas mulheres e comemorar esse dia com todas nossas forças.

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A anfitriã também assumiu seu lugar de destaque na região ao ousar, como chefe de Estado, reunir, na data, lideranças negras de diversos países na cidade de Bogotá em, nas palavras dela, “um encontro maravilhoso, de abraços, de carícias, de olhares , de alegrias, de aprendizagem e ensino”.

“Nosso objetivo é tecer caminhos conjuntos.Tristemente o racismo e a herança colonial fizeram muitos danos ao nosso país e ao mundo. A discriminação e a violência impediram que sabedorias e práticas culturais das mulheres e dos povos afrodescentes fossem valorizados como merecem. Comemoramos o dia de hoje com este evento porque queremos dizer à Colômbia e ao mundo que as mulheres afrodescendentes têm muito que ensinar as nossas sociedades”, afirmou Francia.

O evento teve como convidadas de honra mulheres negras, lideranças políticas, econômicas, culturais e sociais da América Latina e Caribe, bem como de diversos países africanos e dos Estados Unidos e da França. Também o presidente colombiano, Gustavo Petro, esteve presente e discursou por pouco mais de vinte minutos adotando uma postura de palanque e aproveitando os slogans da campanha presidencial para conclamar as presentes a apoiar o governo da mudança. “A nós nos corresponde fazer possível a mudança, ao povo corresponde não deixar perder a oportunidade. Eu acredito que o mundo precisa de emancipação, é essa nossa última oportunidade”, disse ele em tom enfático.

Já em tom mais animador, mas lançando mão também de um outro slogan da campanha presidencial, Francia Márquez finalizou seu discurso de abertura dizendo: “Convoco a todas as mulheres afrodescendentes da Colômbia e do mundo a seguirmos trabalhando juntas até conseguir que a dignidade seja costume.”

Um ode à desobediência

Contrariamente à postura que se espera de complacência e palavras vagas comum aos chefes de Estado, Francia Márquez, desafia o espaço que atualmente ocupa na institucionalidade colombiana para fazer um alerta às mulheres negras e lembrar à todas nós que a transgressão é uma política de sobrevivência pela qual as mulheres negras têm conquistado suas pautas e espaços.

“Na minha infância como mulher afrodescendente, como filha não só de minha mãe, mas de minha comunidade, aprendi que obedecer pode ser perigoso. Se não fosse pela rebeldia das mulheres de minha comunidade, teriam secado os nossos rios, os rios que são nossos pais e mães, esses rios que são nossos guias, que são a vida em si mesmo. Seguramente se não fosse pela rebeldia das mulheres negras no mundo o curso da história da humanidade teria permanecido na infâmia”, relatou Francia, com os olhos fixos na primeira fileira da platéia onde se encontra Aurora Vergara, ministra de Educação da Colômbia.

Políticas brasileiras

A deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP) e a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco estiveram no painel de abertura do evento, sobre liderança política, ao lado da senadora equatoriana Paola Cabezas, a ex-vice presidenta da Costa Rica Epsy Campbell, a presidenta da Corte Suprema de Justiça do Quênia Martha Karambu Koome e a representante especial dos Estados Unidos para a Equidade Racial e Justiça Desirré Cormier, respondendo a rodadas de perguntas formuladas pela ministra Aurora Vergara, sobre suas trajetórias políticas e desafios na política institucional de seus países.

“Ser uma mulher negra e travesti no país no mundo que mais mata essa população e tentar fazer política pública é um grande desafio. Ver-nos nesse cenário e ver como a política de nosso país é uma política que nos quer ver morta, somos agredidas verbalmente, nos interrompem e quando nossa atuação é desmerecida por nossos companheiros, é desafiante. Mas, nós temos um propósito e sabemos a forma como o levamos ao parlamento e é isso que nos leva à política institucional, porque nossa presença implica que haja uma ruptura de um processo de aniquilação de nossas subjetividades”, afirmou Erika.

Anielle Franco deu um tom final e mais agudo à mesa após se emocionar ao falar da irmã, Marielle Franco — vereadora assassinada em 2018 no Rio de Janeiro durante exercício de seu mandato.

“Quanto mais disserem que não podemos, mais vamos chegar, quanto mais disserem que não somos capazes,mais nós vamos produzir. Quanto mais eles disserem que vão nos calar e silenciar, mais vamos falar e gritar com nossa voz. Eu repito essa frase diariamente desde que assumi o Ministério da Igualdade Racial. Eles dizem que o nosso jeito não é para a política, meu jeito de falar, de andar, de sorrir e de me comunicar, mas é sim, porque não vou mudar para entrar na política, é a política que tem que mudar para que nós mulheres negras estarmos nela em todos os lugares do mundo”, pontuou.

Estavam no evento também outras parlamentares brasileiras: as deputadas federais Reginete Bispo (PT) e Daiana Santos(PcdoB) do Rio Grande do Sul, Dandara Tonantzin (PT), de Minas Gerais, e Carol Dartora (PT), deputada federal pelo Paraná.

Outras lideranças brasileiras não partidárias marcaram presença no evento, como a diretora executiva do Instituto Marielle Franco, Ligia Batista, acompanhada de Fabiana Pinto, coordenadora de incidência do mesmo instituto. Também a ex -deputada estadual mineira Áurea Carolina estava entre as presentes.

“Francia é uma referência para a América Latina e uma referência mundial de atuação popular, de ativismo, de um compromisso com agendas que são tão caras para as nossas vidas, desde a luta por justiça socioambiental até a luta por presença na política institucional, e a grande contribuição que as mulheres negras em geral tem dado ao planeta nesse momento histórico é emocionante. Também me emociona ver grandes nomes do Brasil aqui exercendo uma influência tão positiva, ajudando a qualificar o debate, encorajar outras lideranças de mulheres negras. É uma felicidade muito grande estar na posição de sociedade civil, de volta a esse lugar e percebendo também como eu posso, de onde estou, dar minha contribuição”, afirmou Áurea, atual gerente executiva do Nossas, ONG de ativismo e mobilização social.

Agenda global contra o racismo e o machismo

Em diferentes momentos, Francia Márquez destacou a urgência da construção de uma agenda comum de combate ao racismo e ao machismo que possa ser levada aos governos e organismos internacionais. A presença notória de representantes de países africanos e de outros continentes foi uma das grandes conquistas do evento, pois mostra como a luta pela valorização e pelos direitos das mulheres negras transcende fronteiras, conectando diferentes realidades em um objetivo comum.

A senadora Paola Cabezas durante sua participação no painel de liderança política afirmou que “Quizá ser negra seja meu partido político. Nossa agenda requer uma liderança regional.” No que concordou a jurista queniana Martha Karambu Koome que crê que”sustentar a posição das mulheres na política tem sido bastante difícil, por isso,é importante agirmos em conjunto enquanto mulheres pois há mais questões que nos colocam lado a lado do que as que nos distanciam”.

Conversamos diretamente com a representante estadunidense, Desirré Cormier, que também afirma que “temos lições importantes para partilhar umas com as outras e o racismo não é um problema unicamente de um país ou outro. Nenhum país no mundo está livre do racismo, portanto é um problema global que requer uma solução global”.

Saudação ao movimento negro brasileiro

Em rápida entrevista à Alma Preta Jornalismo durante o encontro, Francia Márquez destacou a luta do movimento negro brasileiro. “Quero mandar um abraço forte a todas as mulheres do Brasil e em espacial as mulheres afrodescendentes e ao movimento negro afro brasileiro que luta e resiste para romper as opressões e o racismo estrutural. Acabamos de firmar um memorando de entendimento entre o Ministério de Igualdade Racial do Brasil e o Ministério de Igualdade e Equidade da Colômbia para trabalhar e combater as discriminações e o racismo que afeta esses dois países”, resumiu.

Memorando histórico

Pela mão de duas mulheres negras, Anielle Franco e Francia Márquez, foi assinado um memorando de entendimento histórico para fortalecer a luta contra a discriminação e promoção da igualdade racial no Brasil e na Colômbia.

Com a assinatura do acordo, as participantes reforçaram a necessidade de um compromisso conjunto para a construção de uma sociedade mais igualitária e inclusiva.

Ambos os países se comprometeram a trocar experiências e promover ações conjuntas que fortaleçam a luta contra o racismo e a discriminação racial, especialmente no que diz respeito às mulheres negras.

Futuro desafiador

Mireille Fanon Mendes, jurista e ativista francesa, presidenta da Internacional Frantz Fanon Foundation e filha do psiquiatra e filosófico político martinicano Frantz Fanon, que esteve em uma das mesas do Encontro, falou à reportagem as impressões sobre o que foi visto e escutado.

“Penso que temos que agradecer muito a Francia Márquez, mas o que vem em seguida ainda é uma questão. Depende muito do que os políticos farão e se aceitarão continuar trabalhando, porque esse é só o começo. Aceitaremos continuar a trabalhar dessa maneira ou vamos apenas voltar para casa pensando que foi um bom evento e pronto? Esse pode ser um ponto de partida, mas o resto do caminho vai depender da vontade política”.

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