Omar al-Bashir governou o país africano por 30 anos e foi deposto após meses de protestos nas ruas de Cartum; movimento popular busca promover eleições gerais no país em meio a conflitos com raízes seculares de colonialismo britânico.
Texto / Vitor Soares
Imagem / Reprodução / Twitter
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Dentre as milhares de pessoas que protestavam no domingo (21), em Cartum, capital do Sudão, um homem carregado nos ombros pela multidão se destaca em um vídeo divulgado pelo jornalista Hamza Mohamed, da Al-Jazeera, em suas redes sociais. Trata-se de um soldado do exército sudanês, tremulando a bandeira do país, em meio à dança e à cantoria da massa de civis.
Dias antes, outra imagem simbólica dos protestos na capital do Sudão viralizou nas redes sociais após registro da fotógrafa Lana Haroun. Dessa vez a personagem era uma jovem estudante de arquitetura, Alaah Salah, de 22 anos, que subiu no capô de um carro para falar a uma multidão de homens e mulheres que a ouviam atentamente.
“Nossas demandas visam remover o regime corrupto que comanda o país desde a sua raíz”, declarou Salah na terça-feira (23). Ela se tornou um símbolo da revolução que culminou com a queda do ditador Omar al-Bashir, há 30 anos no poder, após meses de protestos que deixaram dezenas de sudaneses mortos e feridos.
Powerful image. #Sudan #SudanUprising pic.twitter.com/uapHn3eTe5
— Hamza Mohamed (@Hamza_Africa) April 22, 2019
Os manifestantes, liderados pela Associação dos Profissionais Sudaneses (SPA) e apoiados por parte do Exército, começaram os protestos por conta do alto preço do pão no país e agora pedem que o Conselho Militar de Transição (CMT), que depôs al-Bashir e assumiu o poder, aceite e proteja a nomeação de uma “autoridade civil” para governar o Sudão até que novas eleições democráticas sejam realizadas.
O porta-voz dos rebeldes, Mohammed Elamin, anunciou durante o ato de domingo que a SPA vai cortar a comunicação com o Conselho Militar de Transição (CMT) e que espera nomear um conselho civil próprio nos próximos dias.
Segundo a agência Reuters, já se fala no Sudão sobre a possibilidade de lideranças milicianas, que tinham o apoio de al-Bashir, tomarem o poder. Mohamed Dagalo, líder do grupo paramilitar, minimiza sua intenções, mas oponentes afirmam que ele estaria de olho na presidência desde a administração de al-Bashir.
Ainda na terça, a cúpula da União Africana (UA), reunida no Egito, deu prazo de três meses para que o conselho militar realize a transferência de poder para os civis. Se a determinação não for cumprida, o Sudão pode sofrer sanções econômicas internacionais que tendem a ampliar a crise no país.
O CMT, no entanto, diz que só deve apoiar um governo tecnocrata de transição civil, ou seja, formado por pessoas de perfil técnico, para governar interinamente o Sudão. Enquanto isso, o país permanece em estado de emergência, com suspensão da Constituição e com novos protestos inundando as ruas de Cartum, onde na terça-feira os manifestantes tomaram um trem de passageiros na capital.
Por que o país está em crise?
Apesar de os conflitos terem se intensificado nos últimos meses, por conta das imposições inflacionárias de Al-Bashir sobre o preço do pão e a consequente pressão popular por sua saída, as crises políticas e econômicas do Sudão de hoje remontam processos seculares de construção identitária e colonialismo britânico. Não à toa, foram essas contradições históricas que culminaram com a recente separação, em 2011, do território ao sul do país – hoje um Estado soberano, o Sudão do Sul, que enfrenta grave crise humanitária.
O Sudão passou por um processo de colonialismo ainda mais duradouro do que os vividos pelos povos da América Latina. Por lá, a independência só aconteceu em 1956, quando, pressionada por elites árabes muçulmanas do norte, a coalizão anglo-egípcia que detinha o controle do país cedeu.
Os britânicos são fundamentais, não só do ponto de vista da colonização, mas também do ponto de vista identitário, para a compreensão dos conflitos após a independência do Sudão. Foram eles que, para firmar seu poder de influência futura sobre o sul rico em recurso naturais – como petróleo, por exemplo -, alargaram as diferenças entre os povos étnico-religiosamente diversos por meio da Southern Policy (Política do Sul).
O objetivo dos britânicos era que os povos do sul, massivamente dinkas e nuers, de religião animista ou cristã, não se misturassem com os povos do norte, em sua grande maioria árabes de religião muçulmana. Deu certo. A diferença entre os povos, mesmo que anterior à colonização anglo-egípcia, ganhou contornos institucionais que viriam a se firmar na construção de Estado-nação do povo sudanês de toda origem.
Já livres, a região ao sul do Sudão, separatista, se rebelou contra o governo central, no norte, em duas guerras civis durante o século passado. A primeira, conhecida como Rebelião de Anya Nya, em 1955, deixou 500 mil mortos. A segunda, que se iniciou nos anos 80 e só terminou em 2005, levou ao túmulo 2 milhões de vidas sudanesas.
O maior conflito interno do país acontece até hoje no território conhecido como Darfur, onde 300 mil pessoas já foram mortas desde 2003 e outras 2,7 milhões estão refugiadas, segundo a Organização das Nações Unidas. Envolvendo os grupos Movimento de Justiça e Igualdade e o Exército de Libertação Sudanesa, as batalhas novamente são reflexo das diferenças econômicas entre povos de diferentes partes do Sudão e são consideradas das mais violentas do século.
Levante popular quer instaurar democracia no país e enterrar passado colonial
Passado mais de meio século da independência sudanesa e com a deposição e prisão de Omar al-Bashir, o conglomerado de sindicatos chamado Associação dos Profissionais Sudaneses (APS) toma a frente dos protestos em nome da Declaração pela Liberdade e Mudança (DLM), assinada em janeiro na capital Cartum por 22 grupos pró-democracia.
O documento congrega entidades trabalhistas e estudantis de todo o país e tem como mote central a nomeação de uma autoridade civil de transição que possa encaminhar o Sudão para novas eleições gerais em um período de quatro anos.
Segundo a DLM, o grupo civil que assumir o poder do país de maneira interina terá como prerrogativa a convocação de uma nova assembleia constituinte, a liberação de presos políticos e a permissão de retorno ao país para sudaneses refugiados em outras partes do mundo.
Para a ativista moçambicana do African’s Rising, Chídia Chissungo, há o temor de que as tensões pelo poder criem uma nova guerra no país. “Se o povo, mesmo depois de Bashir ter saído do poder, continua na rua, significa que eles não confiam [no governo militar e transição] e têm muito clara a pretensão de um governo civil”, declara.
Enquanto a situação não se define, a maior nação em território do continente africano e a décima maior do mundo permanece sem um líder reconhecido. Adiante, o povo sudanês deve enfrentar um grande desafio para recuperar os anos de exploração que esgotaram em recursos o país, o deixando hoje com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do planeta.