Dos mais de 19 milhões aportados em editais públicos de fomento, todas as oito mulheres negras conquistaram, juntas, exatos R$545.804,96
Texto / Amanda Lira e Gabriel Araújo | Imagem / Divulgação
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Uma reportagem do Projeto Enquadro: o cinema negro de BH em retratos jornalísticos
A mulher negra está na última posição da cadeia audiovisual mineira. É o que revela levantamento realizado pela reportagem, que analisou os principais editais de fomento público lançados em Minas Gerais em 2018.
Dos 49 projetos contemplados por meio de seis editais de financiamento ao audiovisual municipais e estaduais, apenas oito seriam dirigidos por mulheres negras. Contudo, o que a estatística esconde é ainda mais grave. Dos mais de 19 milhões aportados em editais públicos de fomento, todas as oito mulheres negras conquistaram, juntas, exatos R$545.804,96. Essa quantia é quatro vezes menor que o orçamento do projeto mais caro aprovado pelos editais analisados – R$2.650.000,00 para cada um dos quatro longas contemplados pelo edital de produção e finalização de filmes da Codemge, a Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais. Vale ressaltar que, dessas quatro produções, três teriam na direção um homem branco, enquanto um seria dirigido por um homem negro.
Embora a proporção quantitativa entre negros e não-negros seja semelhante nos editais analisados – já que, entre os 49 projetos contemplados, 25 seriam dirigidos por pessoas brancas e 24 por pessoas negras, no caso, pardas ou pretas – o mesmo não pode ser dito para o valor aportado em cada projeto. Considerando o total de quase 20 milhões, metade foi destinado a homens brancos, cerca de 30,7% a homens negros, 15,8% a mulheres brancas e 2,9% a mulheres negras.
Arte: Infogram
Para chegar a esses resultados, a análise contemplou os principais mecanismos de fomento ao audiovisual público em Minas Gerais durante o ano de 2018. No âmbito municipal, foram considerados os projetos de audiovisual pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura e pelo Edital Descentra, mecanismos organizados pela Secretaria Municipal de Cultura de BH. Do ponto de vista estadual, foram incluídos projetos autorizados a captar ainda no ano de 2018 via Lei Estadual de Incentivo à Cultura, da Secretaria Estadual de Cultura. Além desses, foram incluídos na análise os então principais editais de audiovisual do Estado: os editais de produção de filmes e desenvolvimento de roteiros administrados pela Codemge, e o prêmio BDMG Cultural/FCS de Estímulo ao Curta-Metragem de Baixo Orçamento, realizado por meio de uma parceria entre o Instituto Cultural do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais e a Fundação Clóvis Salgado.
A análise levou em conta a autodeclaração dos e das cineastas, ou seja, a maneira como eles se identificam racialmente a partir das definições do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. O Instituto entende a sociedade brasileira como sendo formada por pessoas das cores branca, indígena, amarela, parda ou preta – estas últimas duas sendo indicativas da composição do povo negro no Brasil.
Ao todo, foram separados 59 projetos audiovisuais para o estudo, incluindo na amostra aqueles que teriam como resultado filmes ou produções seriadas e deixando de lado os que se destinavam ao fomento de cineclubes, mostras ou festivais. Desses 59, 10 não informaram o nome, o gênero e a raça ou cor de quem assumia a posição de roteirista, no caso dos editais de roteiro, e de direção, nos de produção, até o fechamento desta reportagem.
A ponta do processo
Dos quatro selecionados pelo prêmio BDMG Cultural/FCS de Estímulo ao Curta-Metragem de Baixo Orçamento, principal edital voltado a novos realizadores do Estado, dois eram homens negros, e um, uma mulher negra. Karen Suzane, contemplada pelo prêmio, realizou o curta “A Mulher que Eu Era” com os R$30.000,00 recebidos na categoria de estreante.
“É uma pena que o edital seja tão restrito, em termos de projetos aprovados e valores”, considera Júnia Torres, pesquisadora em cinema e antropologia da Associação Filmes de Quintal e uma das juradas que selecionou os vencedores do prêmio. “Porque chegou uma gama muito grande de projetos que poderiam ter sido aprovados, o que mostra a qualidade e a demanda importante desse tipo de produto”, ela diz.
Trailer “A Mulher que Eu Era” from Amanda Signorelli on Vimeo.
O curta realizado é uma experiência surrealista que, segundo a sua diretora, percorre a transição de ideias e situações que culminam no empoderamento da mulher. “Da nossa entrega à nossa renúncia ao mercado de trabalho, do nosso retorno à nossa emancipação”, explica Karen Suzane, cineasta preta mineira formada pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói (RJ).
Como conta Karen, a primeira versão do roteiro de “A Mulher que eu Era” foi escrito em duas horas a apenas dois dias do fechamento do edital. “Escrevi com muita raiva”, ela diz, ao se lembrar da briga familiar que fortaleceu sua decisão em abordar o tema. Seria a terceira vez que ela tentaria o prêmio BDMG/FCS e a primeira em que seria contemplada. “Esse não é o roteiro que eles querem”, ela afirma, ao tentar projetar a razão pela qual “Vestido de Luto”, seu projeto anterior, não fora aprovado.
“A Mulher que eu Era”, por sua vez, passou pela fase de habilitação documental, por uma primeira avaliação e foi convidado, junto a outros 16 projetos, para participar do pitching decisório do prêmio. Karen relata que estava muito nervosa no dia. “Eu já tinha apresentado um pitching na vida, mas só na faculdade. Então eu sabia como fazia a estrutura de um pitching, mas tinha um ano e meio que eu não fazia isso”. Por isso, estrategicamente, a diretora valeu-se da confiança que tinha no projeto para convencer os jurados a lhe darem o prêmio.
“Eu faço assistência de som, mas não via a hora de sentar na cadeira de direção. Quando será que eu vou conseguir ter essa oportunidade?”, questiona. À comissão avaliadora, ela disse o seguinte: “Vocês precisam comprar essa ideia de ter mais mulheres negras dirigindo. É de extrema necessidade que vocês me deem esse dinheiro pra fazer esse filme, pra eu começar a minha carreira de diretora”.
Do outro lado do pitching, estavam Júnia Torres, Tatiana Carvalho Costa, professora do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário UNA, e Sávio Leite, produtor cinematográfico mineiro que chegou com a “maravilhosa” pergunta, segundo Karen: “Por que você não fez faculdade aqui em Minas?”. Ela conta que deu uma risadinha. “Porque eu não podia me dar o luxo de fazer uma faculdade particular”, respondeu.
Karen Suzane já atuou como assistente de som em projetos da HBO, da GNT, da Globo e da Fox. Arquivo Pessoal.
A confiança da diretora e a qualidade do projeto fizeram com que Karen fosse uma das quatro escolhidas de 69 projetos inscritos. Hoje, finalizado, “A Mulher que eu Era” coleciona exibições em Minas, no Paraná, em Lisboa e até em Milão, e tenta abrir seu espaço entre as programações de festivais nacionais e internacionais.
“Eu acho que é importante os editais responderam a essa questão racial”, afirma Júnia Torres, quando questionada sobre a diversidade ou a falta dela entre os projetos que são selecionados via editais de fomento. “É um edital público e a gente não faz mais que a obrigação de potencializar um fenômeno, um movimento enorme e legítimo”.
Política pública sem representatividade
É fato que, para serem selecionados em editais de fomento, cineastas negros e negras precisam ter acesso aos mecanismos de financiamento público. Não é à toa que 68% dos proponentes que se inscreveram como pessoa física na totalidade dos editais se consideram negros ou negras. Afinal, nem todos conseguem formar uma produtora e competir como pessoa jurídica, concorrendo de igual para igual com as já consolidadas produtoras do Estado.
Por essa razão, mecanismos de fomento como os promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte tornam-se importantes, por permitirem a participação de uma camada mais ampla da classe audiovisual ao liberarem as inscrições para todos os membros da sociedade civil, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.
Embora não sejam editais específicos para o fomento do audiovisual, a Lei Municipal de Incentivo à Cultura e o Edital Descentra possibilitaram uma democratização mais ampla do uso do dinheiro que era investido na cultura da cidade. Além disso, em ambos editais municipais, foram realizadas caravanas culturais em diferentes espaços nas variadas regiões de Belo Horizonte para divulgar as oportunidades de financiamento e tirar dúvidas de possíveis proponentes.
Nesses dois casos, “a promoção e a valorização do conteúdo artístico e/ou cultural das culturas negra, indígena, cigana e LGBT, ou que promovam a igualdade de gêneros”, como aponta a Secretaria Municipal de Cultura, não foi apenas uma bandeira erguida pela Prefeitura, mas traduziu-se numa política que efetivou resultados. Nos dois editais, negros e negras foram maioria contemplada com projetos de audiovisual aceites. Entretanto, os orçamentos aprovados de todos os seus 12 projetos juntos não chegaram a receber 1 milhão de reais.
Diferentemente dos editais promovidos a nível estadual, cujo alto investimento esbarra na falta de diversidade entre os selecionados. De acordo com a última gestão, foram investidos mais de 50 milhões de reais no setor, cálculo que abrange o lançamento de editais, o patrocínio a eventos, como a Mostra de Cinema de Tiradentes, e a realização da MAX, a Minas Gerais Audiovisual Expo.
Contudo, o que incomoda algumas produtoras de cinema em Minas é justamente o modo como esse dinheiro é distribuído. “As pessoas não querem dividir o pão. Quem ganha os editais são sempre os mesmos. Isso em Minas, isso no Rio, isso em São Paulo, isso em qualquer lugar. São as mesmas pessoas brancas e as mesmas pessoas heterossexuais. É o clichê do clichê”, critica Jacson Dias, cineasta fundador da produtora Ponta de Anzol.
Indiretamente, Jacson cutuca a falta de diversidade na seleção dos projetos que são premiados em editais públicos. Sua percepção é válida ao se considerar o edital lançado pela Codemge, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais, no início do ano passado. Sozinho, o Edital de Produção e Finalização de Obras Cinematográficas fez com que mais de 16 milhões dos 19 milhões de reais que estão sendo considerados pela análise chegassem ao audiovisual mineiro, representando a maior quantia já disponibilizada pelo Estado para o fomento do setor. Ainda assim, dentre os catorze selecionados, apenas três se consideravam negros – todos homens.
“É um edital concentrador de recursos”, avalia Ewerton Belico, cineasta mineiro que codirigiu “Baixo Centro”, longa vencedor da Mostra Aurora da edição passada do Festival de Tiradentes, junto a Samuel Marotta. “Faz com que você tenha poucos contemplados, o que é uma coisa que a gente sabe que não adianta. A gente fica sonhando que precisa ter um realizador negro ou mulher que ganhe 3 milhões de reais, mas daí teríamos só um ou uma, entende?”, ele questiona.
Para além da questão concentradora, os projetos contemplados pelas ações da Codemge passam longe na tentativa de representar a multirracialidade da sociedade brasileira. A falta de representatividade encontra eco nas comissões avaliadoras que escolhem os projetos premiados. No edital em questão, por exemplo, nenhum negro ou negra estava participando dos processos decisórios. Nem na comissão que selecionou o projeto de Ewerton Belico, o documentário multiplataforma “A Luta que não pode parar”, selecionado pelo Edital de Roteiros da empresa.
Samuel Marotta e Ewerton Belico, último da direita, durante os processos da filmagem de “Baixo Centro”. Foto: Randolpho Lamonier / Divulgação
“Acho a atuação da Codemig desastrosa. Cataclísmica. Pegou-se um edital que tinha seus problemas, que era o Filme em Minas, destruiu-se o conhecimento acumulado com a pretensão de construir do zero. É paradoxal dizer isso, mas raras vezes houve no Brasil um edital tão neoliberal”, Ewerton argumenta. O Filme em Minas, edital mencionado pelo diretor, foi um programa de estímulo ao audiovisual que trouxe às telas, por exemplo, os premiados “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans, e “Temporada”, de André Novais Oliveira.
Questionada pela reportagem, a Codemge ressalta que “atua como indutora do desenvolvimento mineiro, valorizando também iniciativas e políticas de inclusão social”. Sobre a composição das comissões de avaliação, a empresa argumenta que realizou chamamento público para cadastramento de profissionais interessados, levando em conta a paridade de gênero, a diversidade de raças, a pluralidade, a representatividade nacional e a experiência do candidato para a escolha dos membros das comissões. Porém, entre abril a setembro de 2018, eles receberam 21 inscrições, sendo de 17 autodeclarados “brancos”, 1 “amarelo”, 2 “pardos” e 1 que autodeclarou-se “Caboclo-Árabe-Italiano-Português (sou considerado branco)”. “Logo, a diversidade foi considerada no processo de seleção”, a empresa afirma.
Fomento em suspensão
A explosão de cineastas negros e negras em Belo Horizonte ocorre justamente no momento em que o financiamento ao setor audiovisual do Estado entra em suspensão, com o encerramento da Diretoria de Fomento à Indústria Criativa da Codemge, diretoria responsável pelos editais do setor, e com o risco dos desmontes da Lei do Audiovisual, aprovada no ano passado, e do Prodam, o Programa de Desenvolvimento do Audiovisual Mineiro.
“Na medida em que a maior parte desses diretores negras e negros estão em começo de carreira, é evidente que há uma dificuldade pra eles e elas, como há para todos”, considera Ewerton Belico. “O declive do fomento rompe um ciclo de produção e atrasa o desenvolvimento de carreira de uma penca de gente. E às vezes põe fim em certas carreiras”, o cineasta aponta.
“A gente tá vivendo simplesmente o fim do mundo. A gente não sabe como vai sobreviver a isso”, desabafa Júnia Torres. “É um desmonte preocupante, porque você tem produtoras que estão começando, você tem uma explosão de diretoras e grupos… Se você não tem condição de dar continuidade, quanto tempo vai levar pra remontar isso?”.
Segundo a Codemge, não há definição quanto ao lançamento de novos editais de fomento ao setor. Por outro lado, mineiros aguardam a liberação do Edital BH nas Telas, parceria entre a Ancine e a Prefeitura de Belo Horizonte que sofre atrasos de publicação graças ao imbróglio envolvendo a Agência Nacional de Cinema e o Tribunal de Contas da União (TCU), que cobra maior transparência na análise das prestações de contas de projetos aprovados. Com a situação parcialmente resolvida, é de se esperar que o BH nas Telas saia no próximo semestre.
ERRATA: O Edital BH nas Telas foi publicado após a redação desta reportagem. Proponentes podem inscrever projetos até 08 de julho.
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O Projeto Enquadro é uma iniciativa experimental realizada por Amanda Lira e Gabriel Araújo como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais.