Cultura, geração de renda e política ecoam no Festival 100% Favela, a maior festa de rap da Zona Sul de São Paulo
Texto e imagem / Solon Neto
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O bairro paulistano do Capão Redondo já foi conhecido como lugar perigoso e visto com desconfiança. Essa visão está mudando. Eternizado em músicas e poesias, o Capão se tornou local de inovação e referência com eventos e feiras, tornando-se um polo cultural de São Paulo.
O Festival 100% Favela é um exemplo desse movimento. Já tradicional, carrega desde o nome um tom de valorização. Na edição de 2019, realizada na noite que dividiu o sábado (28) do domingo (29), trouxe dezenas de shows de nomes consagrados ao bairro de forma gratuita, entre eles Mano Brown, Thaíde, Ndee Naldinho e Cris SNJ.
Diolanda da Rocha Lopes, 32 anos, além de comerciante é uma das organizadoras do evento. Moradora do Capão, ela explica durante uma pausa nas vendas de bebidas e salgados no festival que tudo começou de forma simples, como um espaço para artistas locais cantarem.
“Através do 100% Favela a nossa comunidade é conhecida por geral e hoje é a maior festa de rap da Zona Sul”, diz.
A rua Adoasto de Godoy, sede do evento, ficou até apertada. O palco, montado na esquina da ladeira, em frente à icônica Black House, juntou milhares de rostos curiosos em uma noite de frio e vento gelado. Segundo a organizadora, pelo menos 20 mil pessoas passaram pelo local ao longo das quase 12 horas de programação.
Diolanda diz que apesar do tamanho do festival, a administração municipal dificulta a realização do evento com intimidação e burocracia. A comerciante aponta, porém, que o festival é financiado através da ONG Periferia Ativa, sem apoio financeiro da prefeitura.
“Por ser uma festa de rap, eles acham que vai ter briga, confusão e graças a Deus são 19 anos na pura paz com toda a comunidade envolvida”, afirma.
Diante dos olhos dos locais, discursos políticos, lirismo periférico e rimas certeiras ecoam nas batidas pelos becos. As casas, transformadas em camarotes, juntam moradores nas lajes durante a madrugada de música, festa e mística noite adentro.
A organizadora ainda explica que os moradores são compreensivos com a festa e que o evento se torna uma fonte de renda, girando a economia local com o movimento atípico de pessoas que vêm de várias regiões.
“Como a festa é uma vez só por ano, a maioria abraçou com muito amor. É uma renda que, querendo ou não, leva para a comunidade toda, porque quem trabalha é a própria comunidade”, aponta. Além da barraca dela, outras várias foram postas na rua junto com os comércios que ficaram abertos durante a noite para suprir a demanda.
‘Tem que motivar a quebrada’
Maria Margarida de Oliveira, de 52 anos, veio de moto de Osasco para assistir ao festival. A diarista conta que costuma frequentar eventos de rap e exalta a importância desse tipo de evento em um bairro de periferia.
“É muito importante porque a gente já passa tanta coisa na vida que acho que um divertimento sempre é bom. E nós merecemos né? A população mais pobre merece uma distração”, diz.
A diarista conta que estava ansiosa para assistir ao show do Crônica Mendes, que de cima do palco não poupou críticas ao presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Margarida, porém, estava mais interessada na música e diz que se impressionou com a humildade do artista.
Já Rodrigo Gonçalves, um pedreiro de 38 anos, morador de Paraisópolis, apontou que fica feliz ao ver a mensagem do rap chegando às novas gerações.
“Hoje o rap está muito devagar mas está voltando a ser o rap que nós estávamos querendo nas quebradas”, diz.
Para Rodrigo, que está pela terceira vez no Festival, o rap é um incentivo:
“Tem que ter o rap, tem que ter mais motivação para o pessoal, tem que motivar a quebrada!”.
‘Um presente para a comunidade’
Uma das atrações do início da madrugada foi a cantora Cris SNJ, que levantou o público e ressaltou a importância de mulheres negras ocupando os palcos de festivais de hip-hop.
“Com certeza uma barreira que a gente está rompendo, porque como mulher negra eu posso falar as dificuldades que eu passo”, disse, acrescentando que sua presença no festival pode ser fonte de inspiração, assim como ela mesma se inspirou em outras mulheres negras antes.
De dentro de um dos endereços mais icônicos da cultura hip-hop local, Cris aponta para o futuro.
“Eu estando aqui com certeza outras mulheres vão ver que é um caminho e que um dia a porta vai se abrir para elas também”, acrescenta.
Fugindo do barulho em uma das vielas da região, o músico Ndee Naldinho, voz de clássicos do rap paulistano, contou que se sente honrado em tocar pela terceira vez no festival.
“Para nós é uma grande honra estar em um evento que é um presente para a comunidade, faz a comunidade ter esperança de que pode sonhar, de que pode realizar”, diz.
Para Naldinho, o rap deve manter suas raízes e usar essas oportunidades para enfrentar “o sistema”.
“Manter o que a gente sempre vinha pregando antes, de bater de frente com o sistema e de não concordar com certos tipos de atitude e com certos tipos de governo, de governo opressor. Acho que o rap tem que dar essa continuidade, não pode esquecer as suas raízes”, aponta.
Naldinho disse que respeita que grupos de rap contemporâneos cantem “por mais amor, mais alegria e ostentação”, pois entende que “a vida não é só tristeza”. No entanto, acredita que o rap não deve “esquecer as cobranças” e precisa “continuar batendo de frente”.
“Principalmente com um governo tipo no caso desse atual, que todo mundo vê que é opressor, principalmente com a periferia e a maioria das pessoas também, que são as pessoas negras”, diz.
Reforçando alicerces diante do desafio de levar informação
Nos fundos de outro beco do Capão, o rapper Coruja BC1, de uma das mais jovens gerações de rappers, diz que o Festival 100% Favela reforça os alicerces do rap, que hoje busca novos terrenos. “Para mim enquanto artista de quebrada é importantíssimo”, aponta.
Segundo ele, “não tem como falar de desigualdade social sem falar de racismo” no Brasil. Sobre esse e outros temas, Coruja entende que vivemos um momento em que o rap tem uma missão a cumprir diante de um processo de desinformação que vem através da política.
“Hoje, a gente não tem só que lidar com o processo de desinformação a gente tem que lidar também com a distorção histórica”, aponta, acrescentando que o atual desafio do rap é “levar informação”.
Sentado dentro dos camarins, estava o ex-senador e vereador Eduardo Suplicy (PT), figura carimbada em shows de rap na cidade.
“Já faz diversos anos que eu tenho acompanhado o Festival 100% Favela, o festival da favela da Godoy, e para mim é sempre uma satisfação encontrar aqui pessoas que são tão amigas e carinhosas”, diz.
Foi em uma das edições do Festival 100% Favela que Suplicy foi eternizado em uma imagem que circula há anos na internet como gif, retratando um show dos Racionais MC’s que ele acompanhava no meio da plateia com o dia amanhecendo.
“Eu compreendi que se nós quisermos efetivamente entender os sentimentos da população dos bairros mais modestos da cidade de São Paulo e de todos os lugares do Brasil é essencial ouvir as letras, as canções que estão agora sendo cantadas aqui”, afirma.
Suplicy permaneceu até o amanhecer e subiu no palco durante o show mais aguardado da noite.
Já eram quase seis da manhã quando, no ápice da festa, Mano Brown cantou “Jesus Chorou” com o palco lotado e uma longa queima de fogos clareou as ruas do Capão.