Meu nome é Ingrid Farias, sou uma mulher negra, bisexual, mãe, favelada e nordestina. E essa última identidade me fez pensar em como seria a repercussão de uma execução como essa se o território fosse esse que eu vivo, o Recife
Texto / Ingrid Farias
Imagem / Reprodução
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Hoje faz um ano da execução que arrancou de nós uma das maiores lideranças políticas que nosso país já teve, Marielle Franco, assassinada juntamente com seu motorista Anderson Alves, provocando o maior levante já visto em memória de um legado de luta e resistência nesse país.
Não apenas por ser uma mulher na política, mas por ser uma mulher negra, lésbica, favelada; a atuação de Marielle incomodou a estrutura patriarcal que, até então, poucas vezes foi questionada por mulheres.
Durante esses 12 meses vivemos de resistir e organizar as mulheres, em especial as mulheres negras e faveladas, mas por aqui no Nordeste também vivemos de nos perguntar: e se Marielle fosse vereadora aqui no Nordeste? E se ela tivesse sido assassinada numa cidade em outra região do país essa repercussão seria tão grandiosa?
Na verdade, sempre me pergunto se Marielle fosse vereadora em uma cidade nordestina, se o próprio mandato dela e suas ações tão aguerridas seriam também repercutidas com a mesma intensidade. Essas perguntas nos estremecem por dentro, estremecem o corpo das mulheres negras e nordestinas que tem o sonho de ousar disputar os espaços históricos de poder.
Conheci a companheira Marielle na construção do grupo político Partida, e sempre nos encontramos nas trincheiras da luta por uma nova política de drogas, pauta que ela sempre levou aos espaços denunciando o modelo de proibição das drogas como um projeto racista de segurança pública.
Eu, militante da pauta antiproibicionista há 13 anos, Mari, militante da segurança pública há muito mais. Resolvi escrever esse texto porque, assim como muitas sementes desse país, eu também desejo ocupar – com toda força e resistência, como Marielle o fez – as eleições para vereança em 2020.
Meu nome é Ingrid Farias, sou uma mulher negra, bisexual, mãe, favelada e nordestina. E essa última identidade me fez pensar esses dias como seria a repercussão de uma execução como essa, se o território fosse esse que eu vivo, o Recife, uma cidade de dois milhões de habitantes e que também referenda uma lógica violenta e patriarcal nos espaços públicos e, em especial, nos espaços políticos de poder.
Um levantamento feito pelo portal de notícias G1 aponta que de 2017 para cá o número de políticos assassinados no Nordeste / Norte é o maior do Brasil. Foram 24 homicídios nas duas regiões e 16 nas outras três, sendo 6 no Sudeste. Essa realidade me fez perceber que, mesmo esses dados sendo tão alarmantes, nós não lembramos o nome de nenhuma dessas mulheres assassinadas aqui no Nordeste por ousarem, como Marielle, ocupar a política.
São casos como esses que apontam uma lógica perversa sobre em que territórios acontecem os fatos que pautam a história do nosso país, que viram notícia. Há muito anos, em minha militância, faço a denúncia da existência de uma cultura que invisibiliza politicamente todas as experiências de resistência e luta que acontecem fora da região sudeste (eixo Rio-São Paulo). Cultura essa que, além de invisibilizar, torna seletiva a comoção dos corpos que tombam no Sudeste e dos que tombam no Nordeste.
Não há dúvida que as execuções e a violência estatal sempre recaem sobre os corpos negros e pobres em qualquer região deste país. Mas ainda assim é importante denunciar o fato de que não lembramos dos nomes das crianças vítimas de bala perdida no Nordeste ou em outras regiões; ou o nome das mulheres que também tiveram seus corpos arrastados pela violência policial; ou mesmo aquelas militantes indígenas que são queimadas vivas em nome do grande capital.
A ausência de memória sobre as vítimas do genocídio é um sinal mórbido de como a comoção e levante popular acontecem em torno de uma narrativa hegemônica territorial centrada numa região do país, assim como era desde da era do açúcar e do café.
Marielle foi eleita num contexto muito importante da luta feminista negra no Brasil, somando-se à crescente e revolucionária organização política de nós, mulheres negras e populares, marcadas pela realização da Marcha das Mulheres Negras em 2015, formação de diversos coletivos de mulheres negras, jovens e faveladas entre 2013 e 2016, o reconhecimento de intelectuais negras fundamentais para descolonizar o conhecimento.
Foi nesse contexto político que Marielle se elegeu, porque a luta feminista de nós mulheres pretas já não mais topava estar a reboque de qualquer outra luta. E isso não diminuía outras pauta; pelo contrário, indicava o aprofundamento de uma estratégia histórica para o fim das desigualdades e do racismo: TER AS NOSSAS MULHERES NEGRAS NO PODER!
E é com essa reflexão, sobre ter as nossas no poder, que provoco a indagação sobre quais são os corpos atualmente que carregam o legado de Marielle? Quem são aqueles que falam “em seu nome”, quem são aqueles que tomam para si sua história e, muitas vezes, colocam em suas contas pessoais e redes sociais a existência e resistência dessa mulher?
Essas perguntas devem ser feitas e recebidas com muita tranquilidade, pois não daremos nenhum passo atrás no que acreditamos como projeto de sociedade. E, no nosso projeto de sociedade, nós falamos por nós mesmas!
Marielle não é legado de um partido, nem mesmo de um grupo. Marielle é legado de um levante histórico de mulheres negras que jamais se curvaram a nenhum projeto individual, e que sempre conduziram sua revolução de forma coletiva, subversiva. É preciso estar atentas e fortes para não permitir que, por anos a fio, seja mais uma mulher negra que “carregue” homens brancos em legados de revolução.
As sementes de Marielle são do nosso povo preto não mais permitindo nenhum caso de racismo nos supermercados, nos bancos ou nas ruas, repudiando casos de LGBTfobia, machismo; é nossa juventude negra protestando, se organizando e alterando realidades cristalizadas pelo racismo e machismo. Esse é o legado de Marielle!
Já o legado invisível das mulheres negras nordestinas, das poucas mulheres negras eleitas nos últimos anos, esse ainda precisamos jogar luz. Precisamos falar, nos incomodar. Não quero, como aponta a necropolítica de Achille Mbambe, referendar a história do meu povo pela dor, pela morte. Não quero que lembrem apenas dos nomes daqueles que tombaram nos campos de batalha de uma sociedade estruturada pelo racismo. Quero que lembrem agora, em vida, do nome das nossas mulheres negras eleitas: Leninha em BH, Marta e Olívia na BA, Jô Cavalcanti e Robyoncé Lima em PE.
Lembrem das negras que nos oferecem outros olhares para sonhar com nosso aquilombamento, como as poetas Maria Firmino, Bione, Debora Aguiar e também de nossas intelectuais que revolucionam um conhecimento cristalizado como Denise Botelho, Vilma Reis, Valdenice Raimundo. Quero a lembrança de todas elas, de todas que, dia a dia, que resistem e EXISTEM fora do eixo pautado como o centro do mundo (RJ e SP).
Com esse texto não tenho nenhuma pretensão de chegar a certezas absolutas e tomo como exemplo a feminista negra portuguesa Grada Kilomba. Escrevo hoje com o sentido de questionar para provocar a descolonização de nosso pensamento coletivo, de nossas certezas inabaláveis.
O caso de Marielle repercutiu de forma tão potente em todo país não apenas porque Marielle era uma gigante em sua atuação e existência. Mas se Marielle fosse vereadora em outra região do país, a repercussão de seu caso e de seu legado teriam tanta adesão? Quantas são as mulheres negras parlamentares no Nordeste ou em outras regiões desse país que vocês sabem o nome?
Provocar desconfortos é necessário para estimular a alteração de cenários cristalizados por certezas inabaláveis construídas pela colonização. Nós, mulheres negras, continuaremos resistindo não só por Marielle, mas para que cada uma de nós não precise morrer para ser lembrada ou amada. Queremos reconhecimento de nossos nomes em placas nas salas das Câmara das Deputadas, senadoras, prefeituras. Somos sementes e árvores bem enraizadas. E nossa primavera preta feminista não vai parar de estremecer a branquitude e seus privilégios.
Ingrid Farias é coordenadora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas e do Coletivo de Mães Feministas de Pernambuco.