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“Você talvez seja uma das primeiras mulheres negras a se formar em cinema no Brasil”

31 de janeiro de 2018

Renata Martins é cineasta e idealizadora do Empoderadas, projeto cujo objetivo é documentar a história de mulheres negras das mais diversas áreas de atuação

Texto / Pedro Borges
Foto / Nina Vieira

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Renata Martins, 39 anos, é um dos grandes nomes do audiovisual da atualidade no Brasil. A cineasta, em entrevista ao Alma Preta, contou sobre o seu processo de descoberta enquanto periférica, trabalhadora, mulher, negra, e mulher negra.

Esse roteiro, repleto de dúvidas e questionamentos, se confunde com o seu caminho profissional, cheio de cortes e mudanças, e que no clímax, a fez chegar ao audiovisual.

O Empoderadas, projeto o qual Renata fala com bastante carinho e orgulho, parece ser a sua maturidade política e técnica, enquanto mulher negra, com uma câmera e um roteiro nas mãos, e rodeada de outras iguais.

O início do roteiro

Renata Cilene Martins, filha dos mineiros José Elói Martins e Maria do Rosário Martins, nasceu em São Paulo, e cresceu na Zona Leste da cidade, nos bairros da Vila Carrão, Itaquera e Cidade Líder.

Renata, com uma recordação carinhosa e saudável da sua infância, lembra de ter se aproximado das brincadeiras destinadas ao gênero masculino, caso de pipas, carrinho de rolimã, bolinha de gude, pega-pega.

“A boneca, o forninho, tudo isso já não me interessava tanto”.

Renata, a filha caçula, diz ter vindo para a família para “desorganizar um pouquinho as coisas tais como elas estavam”. Ela não só subverteu a lógica das brincadeiras masculinas e femininas, como na infância discordava da posição dos pais, mesmo que inconsciente, de exigir das mulheres que arrumassem a casa, enquanto seu irmão podia assistir TV.

Essas não são as únicas recordações que têm da infância. Ela conta ter memórias familiares positivas e repletas de afeto.

“Isso fez com que eu crescesse uma pessoa mais saudável e segura. Meus pais me educaram para que eu fizesse as minhas escolhas”.

Renata Martins Corpo 1 Nuna

Renata Martins é um dos grandes nome do audiovisual no país na atualidade (Foto: Nuna/Empoderadas)

Leitura de referências e o começo da produção

O primeiro sonho profissional ganhou corpo na vida da adolescente aos 12 anos, quando Renata acompanhava o pai, segurança de uma transportadora que fazia serviços nos aeroportos de São Paulo. Ela ficava maravilhada com os aviões e a partir daí fez crescer o desejo de ser aeromoça.

“Só que quando eu descobri as coisas que precisavam para ser, parecia que só ia complicando. Tinha que ser magra, e eu sempre fui uma adolescente gordinha. Tinha que fazer coque, e eu tinha cabelo crespo. Tinha que falar inglês, e eu não sabia. Então era uma monte de coisa, que eu pensei, “ah não, desencana’”.

Na juventude, Renata colocou como meta o ingresso na universidade e começou a trabalhar e a estudar no cursinho Aprove, no Butantã. Nesse momento, a jovem se aproximou dos professores da disciplina de história e geografia.

Foi durante esses diálogos que o cinema se transformou em possibilidade real para a vida da estudante, profissão que já chamava a sua atenção desde os filmes que assistia na Sessão da Tarde, da Rede Globo.

“Conversando com um professor de história amigo meu, eu disse que se eu tivesse dinheiro eu faria cinema. Na USP a nota de corte era maior do que medicina e tinha na FAAP, muito cara. Eram as duas únicas universidades que tinham a formação”, conta.

Fruto das políticas do governo Lula, o Prouni se iniciava naquele ano, e a inauguração do curso de cinema na Anhembi Morumbi se transformava em uma possibilidade.

“E esse professor de história viu e praticamente me inscreveu. Eu tinha colocado geografia ou sociais na PUC, publicidade no Mackenzie, e o Prouni ia acabar amanhã. Ele viu e era esse sistema que dava para alternar. E quando eu passei, foi ele que soube, que veio me falar. Então tem essa história do Carlão, Carlos Machado, professor de história”.

Empoderadas do Samba Nina Vieira Editada

Leci Brandão durante atividade do Empoderadas (Foto: Nina Vieira/Empoderadas)

No cursinho, Renata não só definiu sua profissão, como também começou a se envolver com debates políticos e a se formar a partir de referenciais marxistas.

No início dos anos 2000, ela e outros colegas tinham um grupo que se reunia a cada 15 dias no apartamento de um amigo, na Avenida Angélica, para discutir sobre os textos escolhidos.

Nessa época, Renata adorava ouvir as ideias de Marilena Chauí, Antonio Candido, entre outros intelectuais.

Ela diz ter também participado do Fórum Social Mundial, quando se recorda de ouvir lideranças como Lula e Hugo Chavéz, no momento em que “a América Latina se organizava para retomar o poder”, como ela mesma diz.

Universidade e o mundo dos homens brancos

A entrada de Renata no curso de cinema da Anhembi Morumbi, por conta da burocracia do processo de cotas, só foi ocorrer um mês depois da turma já formada. Ela lembra até os dias de hoje como foi entrar em uma sala com 80 pessoas, com a presença de apenas uma estudante negra.

O choque com relação ao ambiente universitário foi o despertar de Renata para as questões de raça e gênero.

Durante o curso na Anhembi Morumbi, Renata começou a questionar os professores sobre o porquê de todos os cineastas a serem estudados serem sempre homens brancos, independente do continente a ser pesquisado.

Renata também passou a estudar a história do cinema brasileiro e a perceber a ausência de mulheres nela. Ela tabulou um guia histórico sobre o cinema, que apresenta a trajetória da ficção no país de 1905 a 1970 e notou que nenhuma mulher havia dirigido um filme com esse perfil durante o período, apenas documentários.

Dessa provocação surgiu o coletivo “Chá com torradas filmes”, um grupo de estudantes da Anhembi Morumbi que se reunia às segundas-feiras. As jovens, que discutiam obras de cinema, começaram a conhecer as preferências de cada uma na profissão, seja na filmagem, produção, ou fotografia. Desses diálogos surgiu o curta-metragem “Margaridas”.

O trabalho serviu de motivação para Renata montar seu primeiro projeto solo, o filme “Reificação”, uma obra experimental, em preto e branco, com um estilo expressionista. A seleção do curta-metragem para ser apresentado em um festival em Roterdã, Holanda, foi a certeza de que sim, Renata estava no caminho certo.

O despertar da questão racial

No primeiro semestre da faculdade, Renata perguntou para um professor quem eram as mulheres negras do cinema. A resposta foi: ‘Se você concluir o curso, você talvez seja uma das primeiras mulheres negras a se formar em cinema no Brasil’.

“Olha que coisa mais maluca”, recorda Renata.

O professor também disse que existia uma cineasta, Lilian Santiago, e uma montadora, Cristina Amaral, que estavam dirigindo o filme “Família Alcântara” junto do irmão Daniel Solá Santiago. Renata decidiu enviar um email para a diretora, e conseguiu um estágio, o primeiro na profissão.

Depois da experiência, Renata passa a escrever a obra “Aquém das Nuvens”. Ela queria retratar a relação dos seus pais, um casal negro da terceira idade, que se amava, namorava e passeava, como forma de representar a população negra fora dos estereótipos da branquitude.

“Era como se eu pudesse compartilhar com o mundo um micro universo de afeto vivido por pessoas negras”.

Na época ela não conseguia enxergar o filme como político, mas hoje o vê dessa maneira.

“As narrativas que eu tinha de pessoas negras estavam muito atreladas à violência. Eu não tinha lido nada, nem ninguém para produzir o filme. Foi totalmente intuitivo. Hoje eu entendo que o meu filme é político, depois de muito tempo. Se amar para nós foi um direito negado, e se a gente consegue construir uma relação de afeto através do audiovisual, então amar é resistência, portanto, política. Logo meu filme é político”.

Empoderadas Yzalú Nina Vieira Editada

Rapper Yzalú em evento organizado pelo Empoderadas (Foto: Nina Vieira/Empoderadas)

Apesar dos desafios e das produções, Renata conta que ainda não tinha um posicionamento formulado de maneira consistente sobre a questão racial. Para ela, contudo, isso não foi de todo ruim. A não compreensão bem demarcada sobre os meandros do racismo a protegeu de sentir e entender uma série de violências do ambiente acadêmico.

“Eu ouço relatos de meninas depois de mim que já politicamente se colocavam, se entendiam, e eram relatos muito violentos. E eu acho que a universidade é esse espaço do despertar mesmo, onde entendemos algumas coisas quando a gente sai do nosso lugar de conforto. Eu na periferia olhava para os meus iguais. Lá os rostos e bolsos eram quase todos diferentes do meu”.

A vida profissional

O despertar racial ganhou tom mais forte quando iniciou os trabalhos com a companhia de teatro, Os Crespos. Os artistas se utilizavam de teóricos negros para referendar as produções, momento em que conheceu autores como James Baldwin, bell hooks e Sueli Carneiro.

Com a companhia, trabalhou na concepção e produção dos vídeos cenários de “Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar Sem Asas”, e “Cartas a Madame Satã”.

Na sequência de Os Crespos, trabalhou na TV Cultura, na série “Pedro e Bianca”, o primeiro trabalho como roteirista para TV. Agora com uma formação racial mais crítica, ela nota que no grupo de 8 roteiristas, apenas ela e o amigo, Renato Cândido, eram negros.

A afinidade criada com o colega fez os dois desenvolverem o trabalho “Rua 9”, que conta a história de Zinho, um garoto negro que cresceu na Zona Sul e passou a se entender enquanto tal a partir das letras do Racionais Mc’s. Zinho viveu a sua juventude nos anos 90, no contexto do Hip Hop da São Bento, dos Bailes Black e do Samba Rock.

Para desenvolver o projeto, ganharam um edital e montaram uma equipe composta por escritores negros renomados como Sacolinha, Rogério Pixote, Rogério de Moura, Raquel Almeida e o quadrinista Marcelo D’Salete.

“A gente conseguiu montar um time de escritores pretos. Um timão. Foi maravilhoso, foi um projeto lindo”.

Empoderadas

Esse foi o caminho de Renata até chegar ao Empoderadas, o trabalho que talvez melhor represente a sua maturidade enquanto cineasta.

Para além do aprimoramento técnico, ela primeiro despertou seus olhares para as injustiças sociais a partir da concepção marxista da luta de classes.

Ainda na faculdade, compôs o “Chá com torradas filmes” e logo se atentou às barreiras de gênero no país.

Os Crespos, a obra sobre a família Alcântara, as leituras de Karl Marx, bell hooks, James Baldwin, Sueli Carneiro, e o trabalho na TV Cultura com o colega Renato mostraram a ela as fronteiras raciais e o quanto o cinema é ainda uma arte branca.

Empoderadas Adélia Sampaio Natalia Alburquerque Editada

Empoderadas entrevistando Adélia Sampaio, uma das referências do cinema nacional (Foto: Natalia Albuquerque/Empoderadas)

Mas parecia faltar algo. Algo que ganha formato, cara e corpo, ao ler a entrevista no blog Capitolina, com a grafiteira de Belo Horizonte Tainá Lima. No relato, a jovem diz que o “Spray era a sua ferramenta de empoderamento”.

Nesse instante ela decide pesquisar: “O que é empoderamento?”. Notou que a palavra de origem norte-americana é utilizada pela comunidade negra naquele país com forte conotação econômica, e no Brasil, muitas vezes, com o sentido do fortalecimento da identidade.

“Eu falei ‘se o dela é o spray, o meu é a câmera’, então cada um pode usar a ferramenta que tem. Eu mandei uma mensagem para a Joyce Prado, que era minha amiga no Facebook e disse ‘Joyce, acabei de ler uma entrevista aqui da Criola, com mulheres negras produzindo, contando as suas histórias, que tal fazermos uma websérie com mulheres negras que inspiram outras mulheres negras’. O Empoderadas nasceu pronto”.

A colega Joyce Prado topou o desafio de pronto, e as duas começaram a fazer uma primeira lista com mulheres negras que consideravam incríveis, como Thais Dias, Ana Paula Xongani, MC Sofia, Ana Fulo, Thula Ferreira, Dona Raquel Trindade, Leci Brandão, entre outras.

O Empoderadas mantém o mesmo objetivo desde o início, de construir a narrativa de mulheres negras e expor o racismo e machismo dentro da produção audiovisual com uma equipe técnica composta por elas, mulheres afro-brasileiras.

Os requisitos para ser entrevistada são: ser uma mulher negra, se reconhecer enquanto tal e ter uma ação política no mundo que fortaleça outras iguais.

O projeto também presta um serviço às mulheres negras da área, afinal, uma das desculpas utilizadas para a não participação delas em produções audiovisuais é a falsa ideia de que não existem profissionais qualificadas. Nas diferentes temporadas do Empoderadas, há uma grande diversidade de mulheres negras em todas as posições. De acordo com Renata, é uma forma de romper com esse mito de uma maneira propositiva.

“É mais difícil para as pessoas falarem que não tem”.

Além de lutar pela participação de mulheres negras nas diferentes funções, o Empoderadas tem uma característica técnica, que também ganha contornos políticos: a qualidade do material produzido.

“O Empoderadas também nasce com esse desejo de subverter o discurso hegemônico de que nossos produtos, sejam eles quais forem, seja o audiovisual ou escrito, são piores do que os outros. Isso eu já ouvi”.

A preocupação técnica também aparece no desejo de representar essas mulheres negras de maneira que elas se sintam bonitas diante das câmeras. Para Renata, ao longo da história, a população negra foi mal enquadrada pelas câmeras e ou foi muito ou pouco exposta à luz durante as filmagens.

A saída da parceira Joyce Prado do projeto culminou com a aproximação de várias outras, entre montadoras, diretoras, produtoras, diretoras de fotografia, câmeras e técnicas de som. Renata faz questão de citar algumas, como Andressa Clain, Samya Caravalho, Nuna, Nina Vieira, Naná Produêncio, Carol Rodrigues, Ana Paula Mathias, Thais Scábio, entre outras.

Entre as que se aproximaram, Renata destaca Maitê Freitas, jornalista e produtora do Empoderadas.

“Ela é a parceira mais presente e próxima do projeto. É parte fundamental do desenvolvimento do Empoderadas. E a gente tem conquistado uma série de coisas”.

Empoderadas Renata Martins Maitê Freitas Editada

Maitê Freitas e Renata Martins (Foto: Empoderadas)

Renata diz que as duas começaram a contabilizar no ano passado o quanto o projeto já havia captado por meio de editais e apoios e feito circular de dinheiro entre as mulheres negras, e notaram que a quantia chegava próximo dos R$ 300 mil.

“É legal, mas é pouco, pensando que a gente tem quase 40 filmes. Se você dividir isso, não dá nem 2 mil reais por vídeo”.

Mesmo que considere pouco, ela julga ser importante pagar o serviço de mulheres negras. “A gente parte de um lugar que o nosso trabalho é sempre menos, e ele precisa ser sempre de guerrilha, barato, ou de graça”.

Renata Martins hoje trabalha no principal veículo de comunicação do país, a Rede Globo. Roteirista colaboradora da “Malhação Viva a Diferença”, ela acredita que tenha sido convidada por ser negra e pela temática da novela aborda ser a diversidade.

A novela voltada para o público jovem tem a maior audiência do programa desde 2009, e hoje atinge uma média de 22 pontos, de acordo com o Painel Nacional de Televisão (PNT). Cada ponto equivale a 245.7 mil domicílios, 70.5 mil na Grande São Paulo e 44 mil no Rio de Janeiro.

Renata continua no projeto até abril de 2018, e acredita que ocupar esse espaço é um movimento importante para aprimorar as suas técnicas no campo audiovisual.

A sua paixão, contudo, em nada mudou. O Empoderadas segue a ter um espaço especial nos campos profissional e afetivo da cineasta.

Para o futuro, busca uma parceria com uma escola de audiovisual para capacitar as jovens negras a ganhar maior conhecimento técnico e desenvolver melhor o trabalho.

A força do Empoderadas faz Renata olhar para o futuro e pensar no impacto de um projeto que se propõe a contar a história de muitas mulheres negras, gravadas, entrevistadas e produzidas por outras iguais.

“Eu acho que o Empoderadas tem uma potência e uma força por si só”.

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