Apesar de ser vista com certa naturalidade, a raiz da desigualdade social transcende aspectos econômicos e mostra relação intrínseca com a questão racial
Texto / Amauri Eugênio Jr.
Imagem / Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
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Maior exposição a episódios de violência. Acesso limitado ao sistema de ensino, em particular a educação superior. Menos oportunidades no mercado de trabalho. Vulnerabilidade expressiva no que diz respeito a aspectos como saúde, habitação e saneamento básico.
Pesquisas, fatos e tragédias mostram que, diariamente, a população negra é condicionada a estar à margem da sociedade – e, de quebra, a acreditar que questionar o modus operandi desigual é vitimismo.
Na educação, para início de conversa, a disparidade entre as populações negra e branca torna-se evidente. De acordo com estudo publicado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 11,2% da população preta e 11,1% de pardos são analfabetos, enquanto 5% de brancos o são.
Isso não é o bastante? Vamos lá novamente: 70,7% dos adolescentes brancos com idade entre 15 e 17 anos estão no ensino médio, ao passo que 55,5% dos jovens negros estão nessa mesma situação.
Ainda no quesito educação, vamos ao ensino superior. Outro estudo do IBGE mostrou que 12,8% dos jovens negros estão na universidade – em 2005, esse número era de 5,5%. Para efeito de comparação, 26,5% dos jovens brancos conseguiram chegar ao ensino superior.
Demais aspectos, como a Anistia Internacional ter revelado que 77% dos jovens mortos no Brasil são negros, que esse mesmo grupo equivale a 17% do grupo mais rico do Brasil, enquanto três a cada negros estão no segmento mais pobre da sociedade, mesmo equivalendo a 54% da população total do Brasil, dão a entender que há dois países: o dos brancos e o de pretos e pardos.
Ainda que brote alguém das profundezas para dizer que a população negra está onde está porque quer, a realidade é que esse panorama é reflexo de processo histórico no qual esse mesmo grupo não foi inserido na sociedade – ou melhor: historicamente, ficou à margem. E isso remonta à época da abolição do sistema escravo, o qual completa 130 anos em 13 de maio por meio da assinatura da Lei Áurea, sendo que o Brasil foi o último país a fazê-lo nas Américas.
Imagem: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
Causa econômica ou omissão do Estado?
Ainda que o senso comum induza a sociedade civil a ver a desigualdade social como consequência de aspectos econômicos e até mesmo de falta de esforço da população mais pobre – coincidência ou não, composta em maioria absoluta por pessoas negras -, a raiz está, vale reforçar, na histórica omissão do Estado com a população negra.
Se esse segmento social é colocado em segundo plano pelo governo vigente, antes, a política estatal era excludente sem pudor nenhum. Vide as políticas adotadas para o incentivo à vinda de colonos europeus, cujo processo começou em meados do século XIX e previa oferta de terras, entre outras coisas, e medidas que visavam criminalizar a existência negra – o que resultou na ida da população ao morro, culminando no surgimento de favelas.
“Desde o momento em que se faz uma lei que proíbe ou inibe a escravidão do Brasil, que não prevê políticas reparatórias para aquela população se encaixar social, cultural e politicamente, você tem a montagem de instrumental muito complexo, que só poderia resultar em processo de desigualdade social muito profundo, marcado pelo surgimento de favelas, inicialmente, depois pelo deslocamento das periferias, resultando no que a gente tem hoje”, pontua Emerson Inácio, professor da área de estudos comparados de literaturas de língua portuguesa da USP (Universidade de São Paulo).
Democracia racial existe?
Um dos mitos usados para minimizar a denúncia diária contra o racismo diz respeito à democracia racial, na qual pessoas negras e brancas vivem em condições de igualdade e não há estrutura racista.
Contudo, os episódios recorrentes de discriminação racial colocam em xeque essa teoria. De acordo com pesquisa divulgada pelo Ibope em 2016, 46% dos entrevistados afirmaram ter feito ou ouvido alguma declaração de cunho racista. Ainda assim, há quem use a democracia racial como argumento para dizer que (adivinhe?) não há racismo no Brasil. E isso resulta na naturalização de discurso racista na sociedade a ponto de a própria pessoa negra achar que deve estar à margem.
“A importância de que o discurso da democracia resultará na conversa dos últimos tempos sobre tudo ser reclamações’, mimimi’ e vitimização, pois determinadas sensações somente podem ser sentidos por negros e afrodescendentes – e não podem ser por outras pessoas”, explica Inácio, ao mostrar como esse tipo de teoria anula as particularidades da população negra.
Reparação é necessária? E como?
Quando se fala em políticas afirmativas, como cotas raciais e bolsas de auxílio à população, logo o conceito – deturpado – de meritocracia é usado pela parcela social que crê na inexistência do racismo no Brasil por, entre outros motivos, tais medidas serem vistas como privilégios concedidos a uma parcela social.
Para se ter uma ideia, o Ministério do Desenvolvimento Social divulgou, no início de 2018, levantamento no qual foi constatado que 21% da população brasileira têm benefício do Bolsa-Família – no Maranhão, por exemplo, 48% recebem a renda governamental.
Em âmbito educacional, dados da Seppir (Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial) indicavam que, entre 2012 e 2015, cerca de 150 mil estudantes negros ingressaram em universidades federais por meio de cotas raciais.
Então, por quais motivos é necessário haver reparação histórica para a população negra? “O conjunto de situações, discursos e de políticas de não proteção [do Estado] acabam produzindo o estado de coisas que temos hoje. Esse mesmo Estado, tendo deixado acontecer a exclusão, hoje em dia deve tentar diminuí-la e eliminá-la”, completa Emerson Inácio.