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“Branco correndo é atleta. Preto correndo é ladrão”

3 de julho de 2018

O youtuber Júlio Cocielo sofre represálias após publicar comentários racistas no Twitter. Depois das denúncias viralizarem, um pedido de desculpas dele e comentários dos fãs expõe mais desse sistema de opressão que beneficia pessoas brancas no mundo inteiro, além de perpetuar estereótipos sobre pessoas negras

Texto / Thalyta Martins
Imagem / Midiamax

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No dia 30 de junho (sábado) o ator, humorista e youtuber Júlio Cocielo postou no twitter a seguinte frase: “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”, referindo-se ao jogador da seleção francesa Kylian Mbappé, que teve um ótimo desempenho no jogo da Copa entre França e Argentina no dia 30. Mbappé foi descoberto por grandes clubes de futebol franceses aos 14 anos e, hoje, aos 19, é uma das sensações da Copa, além de jogar no Paris Saint-Germain.

Um compilado do jornal “As” mostra os nove jogadores mais rápidos da Copa. Apenas dois são negros e Mbappé não está entre eles. O mesmo comentário não foi feito pelo youtuber citando Cristiano Ronaldo, de Portugal, ou Ante Rebic, da Croácia, ambos no ranking dos jogadores mais rápidos.

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Kylian Mbappé, que teve um ótimo desempenho no jogo da Copa entre França e Argentina no dia 30 de junho (Imagem: X Sport)

Suzane Jardim, historiadora que pesquisa criminologia e racismo, em entrevista ao Alma Preta sobre o caso, disse que Cocielo dificilmente pensaria em fazer o mesmo comentário com um jogador branco pois a associação simplista entre negros correndo e roubo não funcionaria nesse caso, perdendo assim o efeito desse pretenso “humor”.

“É a velha e historicamente construída estereotipação que relaciona o homem negro ao crime e que é hoje responsável por uma série de “tiros acidentais”, de prisões arbitrárias e de seguranças seguindo pessoas negras nos shoppings e mercados.”, afirmou.

“Perdão não deveria fazer parte de luta política”

Depois da repercussão, no dia 30 de junho ainda, Cocielo postou uma nota no Twitter, onde possui sete milhões e quarenta e quatro mil seguidores, pedindo desculpas, chamando o que fez de “piada” e as interpretações de “polêmicas”. No Instagram, onde tem onze milhões e duzentos mil seguidores, não se manifestou. No Facebook, que reúne mais de dois milhões e trezentos mil seguidores, também não falou nada.

Suzane aponta, no entanto, que a questão do “perdão” não deveria fazer parte de qualquer luta política. Segundo ela, não devemos decidir se perdoamos ou não perdoamos um racista ou um ato racista isolado.

“Isso seria trabalhar a política racial em um âmbito individual mediado por conceitos como ‘culpa’ ou ‘perdão’, que dizem mais sobre uma visão cristã e maniqueísta do mundo do que sobre política e projeto de sociedade.”, disse.

Além disso, a historiadora aponta que o problema da exposição de indivíduos vem sendo usada para tapar buracos das questões sociais. Segundo ela, ser racista declarado já não é socialmente aceitável, mas fazer esse tipo de piada e justificar como um “erro” ou como “problema de interpretação” sim. Daí vem a necessidade de “provar” o racismo do indivíduo com declarações antigas, como se só desse modo o ato racista pudesse ser validado. 

“Vimos rodar pelas redes uma série de tweets racistas do tal Cocielo, tweets feitos há cinco, seis anos, e que tinham a pretensão de provar que ele era um racista que não merecia perdão. Se não tivessem encontrado tweets antigos com piadas ainda mais pesadas, o tweet recente não seria menos racista.”

Não tem que ter cuidado

Em muitos dos comentários, internautas colocam como problema o fato de Júlio Cocielo não ter tido cuidado e ter exposto demais as suas opiniões “pessoais” e não o fato de ele ser uma pessoa racista. 

Essas mesmas pessoas não fazem uma reflexão em como falas, como as que ele expôs em redes sociais, impactam diretamente a vida e a saúde de pessoas negras, renegando-as para determinados locais, e expõe o pensamento e ações de pessoas brancas fora do ambiente virtual.

O comentário racista que teve uma grande circulação impacta, por exemplo, quando pessoas negras são impedidas ou revistadas todas as vezes que vão entrar em uma praia, que é espaço público. Impacta em como essas pessoas negras serão olhadas e julgadas por pessoas brancas. Não são raros casos de racismo nessas circunstâncias, vide o caso de duas jovens acusadas de roubar um sabonete durante uma vernissage.

Ações de pessoas e empresas

Não tem “mil interpretações”, como Cocielo escreveu na nota que lançou no Twitter. Nesses últimos anos o debate racial esteve em voga. Cotas raciais, futebol, política, saúde, violência, encarceramento, comunicação são temas que foram discutidos sobre a perspectiva da população negra. Ele, uma pessoa da internet, com certeza viu ou ouviu algo. Por que as promessas de mudança, “nunca mais se repetirá”, só vieram agora, depois de toda exposição de uma declaração explicitamente racista? O racismo é comum, e é aceito. Os comentários de apoio legitimam e diminuem o peso das declarações racistas de Cocielo.

“Acho que o ocorrido deveria se focar em quais são as responsabilizações possíveis, as críticas pertinentes e as possibilidades de usar o caso para instruir sobre a gravidade do racismo, não como um erro ou descuido, mas como sistema não tolerável que há séculos vem precarizando as existências negras.”, disse Jardim.

Algumas empresas que trabalhavam com o youtuber manifestaram-se contra as declarações e retiraram campanhas feitas em conjunto com Cocielo e também patrocínios.

“O racismo é levado a sério quando alguém perde dinheiro ou é preso por causa dele”, diz parte do senso comum.

Suzane Jardim concorda com a afirmação, no entanto ressalta que, apesar dessa ser uma maneira de responsabilização, não é rompendo laços com o “novo inimigo” que empresa x ou e firma de fato um compromisso com a causa anti-racista. Os tweets antigos eram públicos e nenhuma empresa pensou em pesquisar as atividades de Júlio Cocielo antes de financiar o youtuber.

“O interesse principal é o lucro, não o compromisso anti-racista. Nada garante que essas empresas respeitem seus funcionários negros, tenham políticas efetivas de diversidade e de repúdio interno ao racismo ou que pensem em financiar influencers que tenham um compromisso anti-racista real.”

Racismo é um crime previsto no artigo quinto da Constituição Federal: a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Ser racista não é um erro, não é um desvio, tão pouco uma doença que se desenvolve em cérebros vulneráveis. Racismo é um sistema de opressão que beneficia pessoas brancas em detrimento de pessoas negras.

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