Especialistas acreditam que, em instituições de acolhimento e privação de liberdade, o método da medicalização pode ser prevenido, mas é fortalecido por discursos patologizantes e usado como mais uma forma de controle social
Texto/Amanda Stabile
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Imagem/AKIRA ONUMA/ASCOM
De acordo com relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), quase 40% dos presídios brasileiros não dispõe de assistência médica. No entanto, a grande maioria das pessoas encarceradas faz uso de medicamentos contínuos. E, a cada dia, aumentam os registros do uso de psicotrópicos tanto no sistema carcerário, quanto no socioeducativo e em serviços de acolhimento. Esse aumento tem chamado a atenção de profissionais da área para o uso indiscriminado de medicamentos como ferramenta de controle social.
Medicalização no cárcere
Não é novidade que a população prisional brasileira tem cor, faixa etária e escolaridade específica. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) referente ao ano de 2016, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil pessoas privadas de liberdade. Dessas, 64% negras, 55% jovens (18 a 29 anos), 51% com ensino fundamental incompleto e presas, majoritariamente, por atividades relacionadas ao tráfico de drogas (26%).
Para Rafael Custódio, advogado e coordenador da Área de Violência Institucional da ONG Conectas, a escolha dos alvos do processo penal é política e parte do princípio de que esta é uma sociedade desigual, com déficit de direitos, o que coloca a população marginalizada no centro dessa mira.
Uma das grandes responsáveis pelo crescimento acentuado do encarceramento no Brasil, por exemplo, foi a Lei nº 11.343, de 2006, popularmente conhecida como Lei de Drogas.
“Ela tira a pena de prisão para o usuário e aumenta a pena mínima para traficantes. Mas a questão é que ela não define direito o que é ser usuário”, explica Custódio. “Na prática, brancos de classe média são considerados usuários, mas se você for preso em um bairro da periferia e for preto, não vai conseguir provar o mesmo”.
Ele complementa que tal lei basicamente aprofundou ainda mais a seletividade do sistema. “Então você tem, na verdade, um gigantesco mecanismo para aprisionar esses que vêm de uma situação de extrema vulnerabilidade social e econômica”, diz. O advogado afirma que, historicamente, o direito penal promove a criminalização dessa população considerada indesejável, para separá-los do resto da sociedade, por meio da criação de leis que legitimem esse mecanismo.
Nesse cenário, a medicalização é utilizada para amenizar e controlar os sintomas gerados pelo próprio cárcere, tais como insônia, depressão e ansiedade. Rafael Figueiró, doutor em Psicologia Social, professor e pesquisador da Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte, explica que “a medicalização é um conceito criado para denominar a prática de uso de medicamentos (sobretudo psicotrópicos) para tratar problemas sociais”.
Em sua pesquisa “Consumo de Medicação Psicotrópica em uma Prisão Feminina”, Figueiró estudou – junto de Magda Dimenstein, Delanno Alves e Gerlândio Medeiros – o fenômeno no Centro de Detenção Provisória (CPD) Feminino de Parnamirim-RN, e observou que 58,8% das detentas que usam os medicamentos, passaram a fazê-lo após a entrada na prisão. “Os psicotrópicos mais utilizados são o diazepan, clonazepan, haloperidol, rivotril, relacionados à saúde mental”, diz.
Dentre os motivos relatados para o adoecimento e consequente uso de psicotrópicos está a superlotação, como relata uma detenta no estudo: “Porque é assim, são só três celas […] Cela com 45 a 47 pessoas, uma dormindo em cima da outra […]. Tá lotado, entendeu? Quando tá todo mundo calado é tudo calmo, mas quando começa tudo a falar, aí fala outra ali, fala outra ali [sic]. Aí isso perturba […]”. .
Para Figueiró, a medicalização pode ser vista como mais uma forma de opressão e controle social de pessoas “indesejáveis”, sobretudo considerando a forma como tem sido utilizada nos presídios.
Medicalização no sistema socioeducativo e em serviços de acolhimento
Em 2015, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) publicou a Resolução nº 177/2015, que alerta para o excesso de práticas medicalizantes nos dispositivos da rede de proteção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Ainda assim, a prática é contínua nos espaços de acolhimento e no sistema socioeducativo, segundo especialistas.
No artigo “Medicalização e serviços de acolhimento institucional: apontamentos sobre dispositivos e políticas públicas da cidade de São Paulo”, Marina Galacini Massari, Mestre em Psicologia Social; e Maria Cristina G. Vicentin, Coordenadora do Núcleo de Lógicas Institucionais e Coletivas da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, evidenciam que o uso de medicamentos durante a institucionalização de crianças e adolescentes em situação de rua segue a mesma lógica de controle social de uma população considerada indesejada.
“Crianças e adolescentes sob tutela da justiça, seja em serviços de acolhimento ou em internatos, estão em maior número sujeitas à internação psiquiátrica”, afirma o estudo. “Com diagnósticos de ‘risco social’, ‘dependência química’ (estendido inclusive para crianças) e ‘transtornos e distúrbios de conduta’ (direcionados aos que reagem à doutrina disciplinadora), o tratamento individualizado e descontextualizado toma conta das práticas cotidianas do serviço”, complementa a pesquisa.
“É importante pontuar a diferença entre medicalizar e medicar”, explica Massari. “Medicar é uma das possibilidades de atuação médica frente ao cuidado em saúde. Já medicalizar é um fenômeno, legitimado socialmente e fortalecido por discursos patologizantes, de ofertas cada vez maiores de diagnósticos, sintomas, tratamentos que acabam reduzindo o sujeito e sua potência”, complementa. Quando direcionado à crianças e adolescentes, esse método é ainda mais preocupante, considerando sua peculiar fase de desenvolvimento e aprendizado.
“Parte do que caracteriza o fenômeno da medicalização na infância é a normatização do desenvolvimento infantil. Esquece-se, com isso, dos diversos contextos em que elas se inserem, as condições emocionais de seus cuidadores principais, as condições sociais, econômicas, culturais dos espaços que circulam. Além das condições individuais e de personalidade de cada uma”, diz a psicóloga.
Nos serviços de acolhimento, “a medicalização da infância apresenta-se seguindo a mesma lógica do silenciamento dos conflitos”, explica. No caso de crianças e adolescentes institucionalizados – e aqui cabem todas as instituições (serviços de acolhimento, escola, Fundação Casa) – esse mecanismo é utilizado para “consertar” comportamentos que fogem do que é considerado normal.
“Os diagnósticos que mais se apresentam são ‘transtorno de conduta’, ‘transtorno opositor desafiador’.”, explica Massari. Para a psicóloga, alguns dos sintomas considerados problemáticos são, na verdade, sinais de saúde.”Muitas vezes as crianças e adolescentes são tirados de suas famílias por razões inacreditáveis! Que bom que elas podem desafiar e se opor de alguma forma!”, afirma.
O psicólogo Gilberto da Silva atuou durante quatro anos e meio como técnico de medidas socioeducativas em meio aberto, atendendo adolescentes e jovens que haviam passado por medidas de privação de liberdade.
Ele indica que o impacto da privação de liberdade é bem subjetivo em cada jovem e que essa questão deriva muito do contexto que antecede a internação. “E é nessa subjetividade que muitas vezes entra a intervenção medicamentosa onde não há necessidade, não há patologia, e sim motivos comportamentais e adaptativos ao ambiente de privação de liberdade”, explica.
Para Rafael Figueiró, a medicalização “tem servido muito mais para silenciar conflitos, dores e reivindicações diversas, do que para tratar pessoas. De forma alguma estão pensando em um tratamento humanizado, mas em uma forma de silenciar sujeitos, controlar subjetividades, manter o presídio tranquilo, enquanto ele age, dia após dia, mortificando os detentos, violando direitos e produzindo uma sociedade cada vez mais violenta”, conclui.