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Banheiro, intimidade e racismo

10 de novembro de 2015

Durante todo o ano, pichações racistas foram feitas no banheiro masculino das universidades brasileiras

Texto e foto / Pedro Borges
Edição de imagem / Vinicius de Araújo

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No mês de outubro, novas pichações racistas mancharam os banheiros das universidades brasileiras. Desta vez, o campus a receber as ofensas foi a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto. Os escritos “Cotas pra preto?”, “Macacos Cotistas fora da FDRP” (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto) e “Aqui é faculdade de gente inteligente (e branca)” foram encontrados em um dos banheiros masculinos da unidade.

Logo após os ataques, o Coletivo Negro do campus fez uma reunião e decidiu por ler uma carta de autoria do grupo nas salas de aula da faculdade. Ana Luiza, estudante de direito da USP e membro do Coletivo Negro da unidade, lembra que as salas escolhidas foram aquelas “com perfil mais problemático, que eram as que não tem um negro sequer e que por sinal são exatamente as salas do corredor do banheiro onde foram encontradas as pichações”.

No dia seguinte, Poliana Kamalu, também estudante do curso de Direito e integrante do Coletivo Negro, leu o texto nas salas de aula. O ato foi todo gravado e divulgado nas redes sociais pelo próprio grupo, que conseguiu atingir as suas metas com a intervenção. “O nosso objetivo que era constranger, que era chocar mesmo, que fosse uma coisa agressiva, foi atingido”, destaca a estudante.

Se dentro das salas de aula, durante a intervenção, a manifestação foi recebida com o silêncio de alguns e o apoio de outros, fora delas, a repercussão foi agressiva e violenta. Ana Luiza denuncia os inúmeros ataques recebidos pelos membros do Coletivo como provenientes de dentro e fora do espaço universitário. “Acho que esses ataques partem também de dentro do campus e de outras faculdades especialmente, mas talvez no Direito também. 90% dessas páginas de extrema direita que existem no facebook já tem publicação sobre isso”.

Dentre as postagens nas redes sociais, aspectos pessoais da vida de Poliana foram expostos e ganharam grande visibilidade. “Começaram a divulgar o fato de eu ter estudado em escola particular, apesar de eu ter estudado a minha vida inteira com bolsa. E mesmo que eu não tivesse tido a bolsa”, afirma Poliana. Para a estudante, a intervenção feita pelo Coletivo foi descontextualizada e a insatisfação dos estudantes negros perante o ato de racismo foi deslegitimada nas redes sociais por meio da exposição da vida pessoal dos membros do grupo.

Poliana problematiza e questiona a seletividade da dor na sociedade brasileira. “Por que as pessoas se incomodam tanto com uma mulher negra falando firme, com palavrão e gritando naquela interpretação, mas não se incomodam com as frases de cunho racista?”.

Para a estudante de Direito, há uma grande dificuldade de entender como as ofensas na internet e a exposição da sua vida também seguiram uma lógica racista. “A gente sabe muito bem qual a figura que essas pessoas selecionam para fazer chacota, para perseguir”. Ana Luiza completa a colega: “o que estão fazendo com a imagem da Poliana é um tipo de exposição que só se faz com meninas, com negros, essa exposição ridicularizante. E ela não precisa ter um cunho racista expresso para revelar quando se trata de uma violência extremamente racista”.

Frente a todos esses ataques, o coletivo negro tem tomado medidas para enfrentar e solucionar o caso. Uma sindicância interna na universidade foi aberta para apurar a situação e a USP enviou uma carta a determinadas instituições em busca de apoio, como a Comissão de Igualdade Racial da OAB. A universidade admite também expulsar o agressor, caso o encontre.

Outros casos

No início do mês de outubro, a mensagem “lugar de negro não é no Mackenzie é no presídio” foi escrita em um banheiro masculino no campus da faculdade em São Paulo. Meses antes, no dia 18 de agosto, os dizeres “o Mack não deveria aceitar nem negros e nem nordestinos” foram encontrados em outro banheiro do mesmo espaço universitário.

Em julho e agosto, outras mensagens de cunho racista foram encontradas no campus da Unesp de Bauru e Ourinhos, respectivamente. Em ambas as unidades, nenhum responsável foi localizado.

Os casos nas universidades condizem com o imenso crescimento dos casos de racismo no Brasil. A ouvidoria da antiga Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR, registrou aumento significativo no número de denúncias de racismo. Os números partiram de 219 em 2011 para 425 comunicados no ano de 2013.

As razões

Mônica Gonçalves, psicóloga formada pela UNESP e integrante da Ocupação Preta da USP, explica que “toda a academia e a universidade brasileira em qualquer estado sempre foi formatada para atender aos interesses da elite e para abrigar essas pessoas, os filhos da elite, fossem elas as elites cafeeiras, as elites ruralistas, qualquer elite”.

Mônica destaca o importante papel da universidade e a define como um “locus de poder da nossa sociedade e de produção de conhecimento”. As elites brancas estariam incomodadas de perder a exclusividade deste espaço com o advento das cotas raciais, porque “agora tem preto lá dentro disputando poder ombro a ombro”.

As cotas raciais, adotadas primeiro pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, e depois pelas federais, têm aumentado de modo significativo o número de estudantes negros nesse espaço. A SEPPIR afirma que a medida, de 2012 para cá, data da criação da Lei de Cotas, garantiu o ingresso de mais de 111 mil negros em cursos superiores em universidades e institutos federais. Até o fim de 2015, as projeções são de que o número ultrapasse os 150 mil.

No Estado de São Paulo, dentre as três instituições públicas de ensino superior, USP, UNICAMP e UNESP, apenas a última adotou o sistema de cotas. Para o vestibular de 2014, das 7.259 vagas oferecidas pela universidade, 1.134 foram reservadas para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escola pública. Destas vagas, 391 foram selecionadas a vestibulandos que se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas.

Apesar de não aceitar o sistema de cotas no vestibular da Fuvest, em junho deste ano, a USP decidiu que 13,5% dos seus estudantes entrarão na universidade via Sistema de Seleção Unificada (Sisu). O número totaliza 1.489 vagas, sendo que dessas, 225 serão destinadas a pretos, pardos e indígenas.

O reitor da universidade, Marco Antonio Zago, comemorou a medida como primeiro passo para a maior democratização da USP. Funcionários e estudantes desaprovaram a ação, entendida como uma tentativa de desviar o foco sobre as cotas raciais na universidade. Outro motivo de insatisfação foi a não participação de representantes do movimento negro da USP.

Para Ana Luiza, o motivo das pichações é “a ameaça de privilégios. Como você sabe, a USP sequer tem cotas. É uma reação à ameaça que eles estão vendo chegar”. Para Poliana, há uma preocupação muito grande com a possibilidade de dividirem aquele espaço com negros, porque “pedem a saída dos que nunca entraram. A gente não tem o sistema de cotas e a gente está muito longe de adotar isso”.

Mais do que repudiar a presença negra neste espaço, parte da elite sente grande incômodo com a representatividade dos estudantes negros. Poliana Kamalu é presidente do Centro Acadêmico de Direito da USP de Ribeirão Preto e, assim como os demais membros do coletivo, está inserida em diversas outras organizações políticas. Para Ana Luiza, “é um incomodo que provoca na branquitude ver negros assumindo papéis que nos ensinam que não são nossos. Apesar de sermos muito poucos, nós estamos inseridos em vários espaços”.

Banheiros

A maior parte das pichações racistas registradas nas universidades brasileiras tem sido feitas nos banheiros masculinos. Mônica Gonçalves lembra que o banheiro é o espaço que representa aquilo que é velado. “O que ocorre no banheiro, que é oculto, que é íntimo, que tem um caráter negativo, é escolhido como o lugar daquilo de manifestação do que alguma forma também é negativo, oculto, que é segredo, que é do campo do não dito”.

Eliane Nascimento, cientista social formada pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES, e integrante do Coletivo Negrada, acredita que as organizações negras têm combatido o racismo de modo muito enérgico e isso fez os racistas recuarem e se utilizarem do anonimato para manifestarem os seus sentimentos. “As pessoas encontram meios para permanecerem racistas sem serem confrontadas e usam o anonimato da internet por meio de perfis fakes e pichações para se organizarem em páginas para compartilharem ideias ou eventos nas redes sociais e atacarem sem receio de serem punidas”, explica Eliane.

Para Poliana, essa é a grande associação a ser feita entre as ofensas feitas no banheiro e na internet: a impunidade. “Assim como na internet, atrás da porta do banheiro, todo mundo acha que é terra de ninguém. O cara vai lá e escreve isso, porque ele está vomitando o racismo dele e porque ele está extremamente incomodado com a presença pequena, mas a presença dos negros dentro das universidades”.

Mesmo com os avanços no combate ao racismo, Eliane recorda como o anonimato “é uma forma de proteção ao agressor e intimidação, basta lembrarmos do Ku Klux Klan”.

Mulheres negras, homens brancos

Grande parte das pichações racistas aconteceram nos banheiros masculinos e muitas delas foram direcionadas às mulheres negras. Por isso, Ana Luiza acredita que, além das questões raciais, há também motivações de gênero nessas ofensas. Ana destaca que, apesar da falta de homens negros no espaço universitário devido ao genocídio e ao encarceramento em massa, “o movimento negro está em um grande momento de protagonismo feminino”.

A atuação das mulheres negras nos coletivos tem incomodado a figura do homem branco, o perfil predominante nas universidades brasileiras. “Em uma sociedade patriarcal, heteronormativa e racista, qualquer organização que tenha como objetivo romper esta estrutura coloca em risco o privilégio deste homem branco, heterossexual que se beneficia da estrutura”, explica Eliane Nascimento.

Pesquisa de 2012 apresentada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostrou que o rendimento por hora trabalhada das mulheres negras chegou a no máximo 58,3% do valor pago a homens não negros em 2011. Na região metropolitana de Recife, a taxa de desemprego das mulheres negras era de 18,1%, enquanto a dos homens não negros, 9%.

Mônica acredita também que as ofensas racistas podem partir com maior frequência dos banheiros masculinos porque pode haver maior empatia por parte das mulheres brancas com os problemas raciais. “Não que elas não vão reproduzir racismo, muito pelo contrário. Quando a gente discute opressão, que é justamente ocupar um espaço de opressão, não destitui o seu lugar de privilégio, que você pode ocupar diante de outra categoria. Mas de qualquer forma, as mulheres ainda têm a possibilidade de serem mais empáticas”.

Em contrapartida, o homem branco, “dado a nossa estrutura social racista, machista, sexista, está muito mais longe de se identificar em qualquer lugar com sujeitos negros, ou com qualquer segmento oprimido”, explica Mônica.

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