Com aumento significativo da população carcerária feminina nos últimos anos, tal realidade denuncia um problema social grave do país. A maior parte das mulheres presas são negras, jovens e de baixa renda.
Texto / Érika Alfaro e Juliana Borges
Imagem / Reprodução
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Um grupo de mulheres espalhadas pelo Brasil que, entre 2000 e 2014, cresceu 567,4%. Elas são mais de 38 mil e 68% são negras. Uma em cada cinco é mãe ou está grávida: são mais de cinco mil crianças e quase a metade tem menos de sete anos. O que essas figuras femininas têm em comum? Todas elas estão presas.
Para entender a dimensão do encarceramento em massa diferenciado por gênero, no mesmo período apontado, a média de aumento de homens no sistema prisional – eles são maioria e totalizam mais de 598 mil – foi de 220,20%. Os dados foram divulgados pela Defensoria Pública de São Paulo e pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen Mulheres.
De acordo com o relatório, o processo de consolidação do projeto democrático delineado na Constituição de 1988 encontra, dentre tantos desafios, dois obstáculos de porte: a redução das desigualdades de gênero e a superação das disfunções de um sistema penitenciário que não tem se mostrado eficaz em seus propósitos. “Considerada a matriz histórica do patriarcado que informa o funcionamento do sistema penal no país, o tema do encarceramento de mulheres merece destaque”, descreve o documento cuja assinatura inclui a ex-presidenta da República, Dilma Rousseff, e o Ministério da Justiça.
Os números revelam um fenômeno expressivo e demonstram uma das causas para que o mesmo aconteça. Se 27% de todas as pessoas no Brasil são detidas por causa do tráfico de drogas, entre as mulheres, o índice chega a 63%.
“Em cada três mulheres presas, duas foram por tráfico. Eles são dos mais variados níveis, mas, em geral, o pequeno tráfico. A mulher ocupa a hierarquia mais baixa. Embora algumas cheguem no patamar intermediário, a chefia, o comando todo, é dos homens. O que nós temos na penitenciária feminina é um grande número de pequenas traficantes. Isso porque elas estão na rua, elas estão no tráfico de formiga, esse que sai, pega a droga daqui e leva para lá, vende. Elas são mais visíveis. Portanto, são elas quem arcam com a repressão mais frequente”, afirma Drauzio Varella, médico que trabalha há 11 anos em presídios femininos.
Um dos fatores que contribuíram para a composição de tal conjuntura foi o endurecimento da lei de drogas, cuja mudança ocorreu em outubro de 2006. Como explicita José Martins Segalla, advogado e promotor de justiça aposentado, desde essa lei (conforme art. 28), a posse de drogas para consumo pessoal é apenada com: advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. “Já a pena para o traficante é privativa de liberdade (prisão), indo de cinco até 15 anos e, ainda, uma multa cumulativa”, pontua.
Um dos pontos mais questionados e discutidos é a determinação de que, para saber se a droga apreendida com alguém é para uso próprio ou não, o art 28, no § 2º, explicita que cabe ao juiz de direito decidir. Conforme elucida Segalla, a definição do juiz deve “atender à natureza da droga, à quantidade apreendida, ao local onde se deu a apreensão e às condições em que se desenvolveu a ação, além das circunstâncias pessoais e sociais, a conduta e os antecedentes do agente”.
O profissional que atua na área penal ainda explica que a lei em questão equipara várias condutas ao tráfico, apenando com as mesmas sanções quem “mexe” com matéria-prima, insumos ou produtos químicos destinados à preparação de drogas (§1º, inciso I do art. 33), também que “semeia, cultiva ou colhe plantas que se constituem em matéria-prima para a preparação de drogas( §1º, inciso II do art. 33) e quem utiliza indevidamente de local ou bem de qualquer natureza ou compartimento para que outrem dele se utilize para o fim de tráfico de drogas (§1º, inciso III do art. 33).
Cárcere feminino: uma dura realidade
A situação das mulheres que compõem tais números é agravada pelo esquecimento e corrói de maneira assustadora nos últimos anos devido ao aumento significativo da população carcerária feminina. Com um retrato que se difere em diversos fatores do perfil masculino, muitas delas são afastadas do convívio com os filhos e não recebem visitas dos pais ou companheiros.
Para entender melhor a realidade dessas mulheres, é essencial que se assimile questões de classe, raça e gênero, que interferem diretamente nesse cenário. Os levantamentos trazidos pelo Infopen Mulheres são alguns dentre muitos que comprovam a seletividade do sistema prisional. Em geral, as mulheres encarceradas são jovens, mães, responsáveis pelo sustento familiar, cuidadoras de outros vulneráveis e possuem baixa escolaridade. Diante disso, elas acabam entrando para o mercado de drogas ilícitas ao buscar uma maneira de sobreviver e cumprir as funções sociais e culturais atribuídas a elas. “A prisão do homem gera impacto financeiro na família, quando ele, de fato, colabora com a casa. E sua mulher segue cuidando dos filhos. Quando ela é presa, os filhos se espalham entre parentes e instituições, expostos a todo tipo de violência”, expõe Drauzio Varella. Toda essa realidade destacada aflige, sobretudo, a mulher negra de baixa renda.
Uma vez atrás das grades, elas recebem poucas ou nenhuma visita, e acabam esquecidas, tanto pelos familiares quanto pelo próprio Estado. “Como a quase totalidade dessas mulheres é pobre, ficam sem completa assistência judiciária durante o período em que estão presas. Enquanto as companheiras de presos homens os visitam todas as semanas, até mesmo para praticarem a chamada ‘visita íntima’, nas penitenciárias femininas o mais comum é elas passarem anos sem receber visita alguma ou, quando muito, esporadicamente, de suas mães”, explica Segalla.
A situação em que se encontram nesse sistema acaba contrariando os direitos assegurados pela legislação. “A própria Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) traz vários dispositivos sobre prisões para mulheres, prevendo, até mesmo, espaço especial para que elas possam amamentar seus filhos durante o período em que estiverem presas. Contudo, há quase que total descumprimento dessas leis. Tenho relatos de presas que dão a luz na cela, em tapetes feitos de papelão, sozinhas, sem assistência médica alguma”, informa o advogado.
Segundo dados de 2013 oferecidos pelo Ministério da Justiça, existe um médico ginecologista para cada 1700 mulheres. Pelos presídios no Brasil, são disponibilizados 171 leitos para gestantes e parturiente, o que resulta em uma vaga para cada 211 detentas. “Tinha grávida com barrigão de oito meses que nem sequer tinha visto um médico. Elas ficavam esperando serem chamadas para que pudessem fazer um exame. Tomavam banhos gelados como todas, a não ser quando estavam prestes a ganhar o bebê. Nesse período, eram transferidas para outra ala, onde tinham acesso a água quente e um pouco mais de cuidado”, conta Joana, nome fictício dado pela reportagem a ex-prisioneira, detida por tráfico de drogas.
Dessa forma, se as gestantes sofrem com a falta de condições, as demais detentas enfrentam uma realidade semelhante. Joana relata que, se estivessem com algum problema de saúde, tinham que escrever um bilhete e mandar para enfermaria. “Quando havia médico ou enfermeira, eles selecionavam cerca de cinco pessoas para ser atendidas. Sorte de quem escrevia o ‘melhor bilhete’, o que comovesse mais. Caso contrário, a pessoa ficava dias ou semanas sem nenhuma assistência, ou até ser curado por um milagre. Se estivesse com algum problema dentário, tinha que aprender a conviver com a dor, ou a única solução era a extração. Uma situação muito precária e lamentável”, descreve.
Na prisão, o Sistema Único de Saúde (SUS), que é de competência da União, é o responsável pelo serviço envolvendo as mulheres. “Para além da demora no acesso, existem denúncias de violações no atendimento médico prestado. Pensando na infraestrutura da prisão, é notório que a mesma não atende às demandas. No caso das mulheres grávidas, com o nascimento do seu filho, mesmo que a Lei de Execução Penal fale em prazo mínimo de seis meses, esse período acaba funcionando como prazo máximo, o que faz com que essas mulheres vivam em um curto período a experiência da maternidade. Além disso, o tempo de cuidado das mães com seus bebês deveriam ser contabilizados para fins de remição, minimizando o impacto e o tempo de cárcere em suas vidas”, afirma Ana Navarrete, representante da equipe de comunicação do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, entidade responsável pelo desenvolvimento da iniciativa Mulheres em Prisão, pesquisa com o objetivo de compreender quais dinâmicas do sistema de justiça criminal dificultam a aplicação de alternativas à prisão provisória para mulheres ao mesmo tempo em que almeja aprofundar a compreensão do aprisionamento e a realidade do encarceramento feminino.
Segundo dados de 2013 oferecidos pelo Ministério da Justiça, existe um médico ginecologista para cada 1700 mulheres. (Foto: Reprodução/countercurrentnews.com)
Consequências de um sistema falho
Quando direitos básicos, que vão de um atendimento ginecológico a assistência de um defensor público, são negados ou limitados a tais figuras femininas, os dias na cadeia são verdadeiras batalhas contra um sistema prisional constituído sob as bases do patriarcado. “A mulher já tem o seu papel e seu espaço limitado por uma sociedade patriarcal. Quando presa, é duplamente punida – por ser mulher e pelo suposto crime. Na prática, isso significa que o cárcere agrava a situação de desigualdade de gênero de nossa sociedade”, expõe Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas Direitos Humanos.
“O cárcere por si só já é uma instituição de violações. No caso das mulheres, a situação é ainda pior. Isso acontece porque quando se pensa no sistema carcerário é possível verificar que ele foi feito por homens e para homens, ou seja, as especificidades de gênero, também violadas fora do sistema, são completamente ignoradas ao aprisionar mulheres”, ressalta Ana Navarrete.
Dessa forma, se os dados são claros ao apresentarem as causas da maioria das prisões de mulheres, a realidade acerca do contexto dos seus julgamentos é sabida e, inclusive, destacada pelo Ministério da Justiça, que considera as ações ineficazes, é notória a necessidade de ações a fim de mudar tal cenário.
Para a organização Mulheres em Prisão, olhar a lei brasileira, revisá-la e adotar estratégias que contemplem medidas alternativas, inclusive com uso de ferramentas disponíveis além do Código Penal, como as Regras de Bangkok, é buscar um país com mais justiça social e mais atento à equidade de gêneros.
“As Regras de Bangkok constituem um documento celebrado no âmbito das Nações Unidas (ONU), em 2010, após reunião intensa de trabalho realizada na Tailândia, em 2009, com um grupo de especialistas. Na ocasião, o ITTC esteve presente como voz da sociedade civil brasileira. As diretrizes ali definidas orientam os Estados-membros da ONU a priorizarem medidas não privativas de liberdade para mulheres respondendo a processos penais ou condenadas por algum crime”, destaca a iniciativa.
Uma das visões oferecidas pelas regras mencionadas é que o encarceramento, que ocorre nas condições vistas, é prisão domiciliar, principalmente em casos de mulheres grávidas, mães com filhos até 12 anos, com responsabilidade primária por cuidados especiais de crianças de até seis anos ou de menor de idade com deficiência.
Nos Estados Unidos, o ex-presidente Barack Obama deu início, em 2015, à antecipação da soltura de milhares de presos no país. O governo se deu conta que os gastos com o sistema prisional são altos e que o encarceramento em massa não necessariamente diminui o tráfico de drogas. No Brasil, a gravidade das consequências de tais atos ainda é ignorada, seja por interesses econômicos ou pela falta de divulgação do assunto. “As prisões se converteram num lucrativo negócio para a economia neoliberal. As mulheres capturadas pelo Estado são as mesmas expulsas do mercado consumidor”, explana Dina Alves, advogada e mestra em Ciências Sociais.
A questão é que se torna muito difícil saber quais medidas devem ser tomadas, uma vez que os dados sobre as mulheres presas são superficiais e começaram a surgir nas últimas décadas. É inviável que políticas públicas sejam estabelecidas sem que se saibam os números. Até mesmo para que a sociedade tenha uma breve noção de como se dá o cenário dentro das prisões femininas, tal consciência seria fundamental.
Assim como as informações devem ser levantadas, cada vez mais o assunto precisa ser discutido e, inclusive, pautado pela imprensa, que encontra diversos obstáculos na hora de tratar dessa situação. Segundo Juliana Santos, jornalista no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o assunto deve ser trazido pelos veículos de informação com o objetivo de expor as condições subumanas em que essas mulheres se encontram presas e as violações aos seus direitos e garantias fundamentais praticados pelo sistema de justiça, tanto dentro dos presídios como nos processos de julgamento.
No entanto, Juliana não nega as dificuldades enfrentadas por um jornalista para abordar o tema: “Há duas questões que impactam fortemente na cobertura jornalística: a falta de dados oficiais sobre o assunto e o fato de que muitos estados se negam a divulgar levantamentos. A segunda questão é a dificuldade de ver de perto a realidade nos presídios. Para entrar em uma unidade é necessário encaminhar um pedido formal ao juiz corregedor do estado, porém a resposta desse requerimento pode demorar meses para ser enviada e, na maioria dos casos, acaba sendo indeferido. Esses entraves, somado aos problemas enfrentados pelo jornalismo na atualidade, que exige que o profissional produza as informações da maneira mais rápida possível, contribuem para que o tema seja pouco pautado pela mídia”, expõe.
Já para Dina Alves, a grande imprensa faz a sua abordagem com viés racista, machista, patriarcal e misógino. “Na verdade, os meios hegemônicos criam condições criminalizadoras e o judiciário condena. O sistema capitalista e racista funciona bem para o grande encarceramento que vivenciamos. A imprensa, o poder legislativo, executivo e, principalmente, judiciário são os responsáveis pelo genocídio em curso por meio do encarceramento em massa no Brasil”, analisa. A profissional ainda considera que a mídia alternativa está, a duras penas, denunciando e abordando essa questão, mas aponta para a necessidade de um aprofundamento no debate sobre um abolicionismo penal interseccional. “A esquerda, as produções acadêmicas, os movimentos progressistas e os feministas precisam banir dos seus discursos as narrativas punitivistas como única via de resposta nas suas agendas de reivindicações”, conclui.
Foto: Reprodução/Pixabay
Finalmente, reflexões acerca do assunto devem ser feitas para que se saiba o melhor caminho a seguir. Não basta apenas entender quem são essas mulheres e como se portam dentro dos cubículos trancafiados, mas sim analisar toda a seletividade em torno do encarceramento feminino, os interesses por trás do fenômeno, as consequências que deixam marcas por uma vida toda na pele de mulheres negras pobres. É preciso compreender que os dados referentes ao perfil da população feminina dos presídios acentuam a referida função seletiva e classista do sistema judiciário criminal, deixando claro que as consequências das violações do direito surgem apenas para as classes excluídas.
Fontes: Ana Navarrete, representante da equipe de comunicação do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, responsável pelo desenvolvimento da iniciativa Mulheres em Prisão; Dina Alves, advogada e mestra em Ciências Sociais; Joana, nome fictício dado pela reportagem a ex-prisioneira, detida por tráfico de drogas; Juliana Santos, jornalista no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); José Martins Segalla, advogado e promotor de justiça aposentado