Texto: Djamila Ribeiro
Baseado em teorias como a de Gobineau, que colocava negros como inferiores, adotou-se nesse país políticas como a do branqueamento. Teóricos racistas desenvolveram teses baseadas no racismo biológico que legitimou a dominação européia. Foram 354 anos de escravidão negra e diversos atos tomados no sentido de manter a população negra apartada.
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Mas, esse texto não é sobre como o país é racista. Meu incômodo é pelo fato de parte da esquerda brasileira não levar esse fato em consideração tanto em pauta como em ação política.
É muito comum vermos alguns auto intitulados líderes da esquerda citarem Marx, Trotsky e isso é algo importante porque foram pensadores que contribuíram e muito em desvelar processos históricos opressores. Mas, se estamos no Brasil, um país que teve 354 anos de escravidão negra, como não citar Clóvis Moura, Milton Santos, Angela Davis, Lélia Gonzalez? Já cansei das vezes em que ouvi dizerem que a questão é de classe, e depois de resolvê-la, todas as outras questões seriam resolvidas. Citando Davis, como falar somente em classe, se raça indica classe? Como usar esse pensamento se raça cria uma hierarquia de gênero? Se racismo impede a mobilidade social da população negra? Não é muito difícil perceber quem são os proletários nesse país. Então por que essa insistência de parte da esquerda de não perceber que o racismo é um elemento estruturante dessa sociedade?
Não estamos na Alemanha do século XIX, mesmo porque a Alemanha de hoje com uma grande imigração turca e de pessoas do continente africano precisa pensar novas formas de combate ao que alguns chamam de neorracismo.
Há uma expressão criada pelo dramaturgo Nelson Rodrigues chamada “complexo de vira lata” que basicamente quer evidenciar o complexo de inferioridade do brasileiro em relação ao resto do mundo. Parece que parte da esquerda sofre de complexo de vira latas com uma visão romantizada de classe trabalhadora, querendo que fôssemos todos brancos pobres operários como em alguns países da Europa. A insistência em não repensar os modos de ação, os teóricos utilizados, a forma como se aborda algumas questões reafirma a insistência desse complexo.
Participei de um debate sobre financiamento público de campanha e uma pessoa disse que era possível se eleger sem financiamento empresarial e citou um deputado que o fez somente com doações de pessoas físicas somando por volta de 300 mil reais. Sou absolutamente contra doações de empresas, mas o argumento dessa pessoa não me convenceu. Sim, é possível, mas eu faria outra questão: é possível para quem? Obviamente que esse homem que se elegeu é um de um meio onde as pessoas têm condições de doar quantidades de dinheiro consideráveis. Uma mulher negra periférica teria pessoas assim em seu círculo? Essa insistência em não fazer recortes de raça, gênero me faz pensar até que ponto são aliados.
O conceito de interseccionalidade, criado por feministas negras, nos faz realizar diagnósticos e planos de ação muitos mais eficazes, mas parte da esquerda ignora e muitos sequer conhecem. Os teóricos citados são majoritariamente os brancos europeus. Mais um aspecto desse complexo de vira latas. Nossos teóricos negros e negras não são bons? Muitos inclusive fazem excelentes análises. Por que não são citados ou sequer lidos? Como não perceber a importância do protagonismo quando falamos de questões raciais? Porque o que na maioria das vezes acontece são pessoas brancas de classe média falando de racismo quando há vários militantes e intelectuais negros que poderiam fazê-lo. Isso não quer dizer que o trabalho das pessoas brancas não seja bom, isso quer dizer que se não rompermos com isso, continuamos mantendo a população negra apartada, ainda mais de um tema que sente na pele. Antes que digam “ah, mas não se pode criticar os aliados”, eu digo: aliado luta junto e entende a necessidade de nossa luta. Não fazer isso é corroborar com as estruturas de opressão.
É imprescindível que parte da esquerda abdique de idéias românticas e simplistas. Que ouça o movimento negro, feminista, para se pensar em ações conjuntas e mais democráticas. Como diz um querido amigo, quem se diz de esquerda, mas ignora a questão racial, não é de esquerda. É mais do que necessário se libertar desse complexo de vira latas. Por uma esquerda que leia Carolina de Jesus, Milton Santos, Sueli Carneiro, Angela Davis, Clóvis Moura. Por uma esquerda verdadeiramente comprometida com a luta antirracista.