Texto: Zenon Zago / Imagem: Vinicius Martins
Ao que parece, as diversas formas de opressão são fundamentadas por mitos que dão aos oprimidos uma noção errônea de que a sociedade está saudável e que o único motivo que causa algum desconforto é o fato de se questionar o status quo pré estabelecido, não a situação social em si. Meritocracia e democracia racial são dois repertórios muito utilizados ao se justificar que as opressões alegadas inexistem. Essas são, porém, ideias fantasiosas sem nenhum embasamento real.
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A ciência, como parte integrante da cultura atual da nossa sociedade, também possui alguns mitos (por mais contraditório que isso possa parecer), que servem de forma a manter o status quo social aristocrático. Essa posição conservadora é sustentada por aquilo que consideramos como as ciências duras (hard). Um desses mitos é o da credibilidade intangível do cientista, concebida na mente da sociedade contemporânea junto ao mito da ciência salvacionista: o cientista, então, se apresenta como uma figura de imposição de autoridade intelectual e superior a natureza humana, sem falhas e sem a possibilidade de ser influenciado.
Desta forma, quando um cientista emite sua opinião de forma pública relatando que “comprovou cientificamente” que negros são inferiores a brancos por serem menos evoluídos, é natural que isso se torne o senso comum em toda a sociedade – ainda mais se tratando de um mundo racista e xenofóbica, que precisa apenas de um álibi científico. Essa foi uma contestação muito similar a de que os negros não o têm alma, para de certa forma relativizar atos abomináveis em nome da manutenção dos privilégios sociais das elites (inclusive dos cientistas, que em sua maior parte constituíam a aristocracia e trabalhavam para ela).
A ciência é uma ferramenta lógica que tem como função testar a credibilidade de hipóteses através da observação, para assim explicar fenômenos naturais. Devido ao caráter interpretativo dos resultados de uma análise científica, interpretações mal feitas (para deixar por isso) e não aprofundadas, tem resultados desastrosos quando emitidos à opinião pública – visões simplórias e em certa parte tendenciosas que não levam em conta que um resultado não pode justificar um ato. Essa explicação pode ser considerada um caso de falácia naturalista, ou seja, justificar um ato (muitas vezes abominável como estupro ou xenofobia) só porque este comportamento é natural¹.
Estranhamente, algumas dessas interpretações tendenciosas de como o ser humano e os animais se comportam na natureza, não levam em conta espécies animais que possuem comportamento homossexual (aí, se recorre à falácia conservadora em que se apela aos padrões sociais humanos de forma a reprimir um ato natural). Desta forma, quando observamos os fenômenos naturais, andamos sobre ovos em relação a ser tendenciosos, devido a nossa formação política, religiosa ou qualquer outro posicionamento que possuímos em relação ao mundo em que habitamos.
Hipóteses racistas, machistas e homofóbicas têm sido debatidas pelos diversos campos de estudo e se apresentam cada vez mais como reflexo de nossos preconceitos, estereótipos e mitos. Logo, percebemos mais e mais que algumas “verdades absolutas” são descontruídas sob uma visão crítica da ciência corroborada por estudos de história e filosofia. Ainda vemos um predomínio desta falta de lógica preconceituosa e opressora no meio científico, aliado ao fato de muitos cientistas tentarem encaixar seus preconceitos com uma roupagem de “verdade absoluta” proveniente dos meios acadêmicos (e ao usar a “verdade absoluta” de seu livro sagrado, o cientista não fica devendo em nada ao fanático religioso que se opõe ao bom senso e se apega as suas convicções).
Mesmo tendo essa constante necessidade epistemológica de busca do argumento lógico, há aqueles que defendam que o racismo é um fato causado por uma falta de afinidade cognitiva e evolutiva de uma etnia para com a outra, causando aversão e até sensação de repúdio. Deslegitimam as cotas criticando as como racistas, já que hipoteticamente, um indivíduo de uma população da costa sul da África tem muito mais proximidade genética de um indivíduo de uma população da Finlândia do que um chimpanzé teria de um indivíduo da mesma população – ignorando completamente qualquer fator social ou histórico de que, independente do genótipo, os policiais identificam os fenótipos negros para matar. A ciência dá ao racista seu álibi e ainda reforça a máxima de que somos iguais, falácia de cunho naturalista.
Somente pense por algum momento o quão lógico aparenta um argumento que trata os seres humanos como se ainda vivessem de caça e coleta. Imaginem tudo isso proferido por um “cientista” que anda em um carro, come carne de bandeja no mercado e usa um computador. É natural?¹ Bom, eu descrevo como falta de bom senso, empatia e analfabetismo político e científico.
¹ a definição de natural é relativa:
1.que pertence ou se refere à natureza. “riquezas n.”
2.regido pelas leis da natureza; provocado pela natureza. “fenômenos n.”