Texto: Marcela Johnson / Ilustração: Vinicius Martins
O desenvolvimento do capitalismo brasileiro se estruturou na seguinte contradição:
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- Para garantir uma produção mais lucrativa na colônia, a classe dominante encontrou na escravidão a forma mais vantajosa de produzir, o que exigia um grande número de escravos. 38% dos africanos sequestrados para serem escravizados vieram para o Brasil. Essa política fez com que, já pelo ano de 1660, o número de negros escravizados superasse o número de brancos em 36.000 habitantes.
- Havia por parte dessa classe dominante um grande temor das massas negras escravizadas e sua resistência à escravidão. Havia uma dependência do Brasil com Portugal porque, para combater a massa negra, era preciso da proteção da metrópole. Essa dependência gerava muitos prejuízos, pois grande parte das riquezas do país eram destinadas à coroa portuguesa.
Ou seja, ou a classe dominante se ligava à metrópole contra os negros, ou armava os negros para garantir sua independência.
“Ora, o aparelho administrativo montado na Colônia tinha dupla finalidade: defender os interesses da Coroa e garantir a segurança dos senhores da insurgência negra escrava, que se mostrava constante nessa fase de modo de produção escravista (escravismo pleno). Se de um lado, esmeravam-se na defesa dos direitos do Rei, da segurança da classe senhoril e na eficiência da máquina administrativa local, de outro, estruturavam-se militarmente para conter os escravos (africanos e também índios) que se recusavam ao trabalho, que através da fuga individual, quer através de quilombos que se organizavam em toda a Colônia.” (Clóvis Moura, pg. 42)
O Brasil, por conta de seu papel internacional, foi o ultimo país a abolir a escravidão. Mesmo com a proibição do tráfico internacional (que demorou tempo para ser realmente cumprido), o tráfico interno e um pequeno desenvolvimento de “produção de escravos”, garantiu continuidade do regime e ao mesmo tempo um demorado processo de modernização e industrialização.
A industrialização tardia é iniciada pelo capital inglês, já apontando a continuidade da dependência internacional do país. Essa condição abre espaço para uma burguesia conservadora e débil que possui muito mais medo da classe trabalhadora e dos negros recém libertos do que tem coragem para se opor à antiga elite colonial ou à dominação internacional.
Essa classe nascente opta pela conciliação com a elite agrária e a dominação inglesa para desenvolver o capitalismo no país. Essa decisão torna incapaz o cumprimento do papel revolucionário que a classe burguesa internacional chegou a cumprir contra o feudalismo, deixando aqui um conjunto de tarefas democráticas em aberto.
“Essa burguesia que se inicia no segundo e último período do escravismo era uma burguesia auxiliar, condicionada, dependente, apêndice e colaboradora dos interesses dos compradores, vendedores ou investidores da nova Metrópole: a Inglaterra. Os seus espaços econômicos, sociais e culturais já estavam tomados, as iniciativas pioneiras e acumuladoras de capitais já haviam sido ocupadas e funcionavam independentemente de sua liderança. Passou, a partir daí, a ser uma burguesia subalterna, que desempenharia funções caudatárias, porém, jamais assumiria o seu papel social e político de transformadora de uma nova etapa histórica de nossa sociedade através de uma proposta de nova orientação social.” (Clóvis Moura, pg. 79)
O processo de abolição foi garantido por um Estado de classe, que defendia o direito do latifúndio, e que passa depois a servir como balcão de negócios da burguesia. No pós-abolição, ao passo que os grandes senhores são indenizados por perderem os seus “bens”, os negros são atacados pela legislação, a exemplo da lei de terras¹, para assim garantir que se perpetuasse a desigualdade entre negros e brancos.
Os negros não tiveram direito à terra para garantir à classe dominante mão de obra barata, ao mesmo tempo que as politicas de branqueamento da população brasileira colocaram os libertos numa situação ainda mais marginalizada. São os imigrantes europeus que ocupam os melhores postos de trabalho e podem, a partir de um certo acúmulo de dinheiro e mesmo por incentivo do próprio Estado, comprar terras e produzir. Já os ex-escravizados ocupam os postos mais precarizados e se tornam também a maioria do exército de reserva, composto por negros e pobres urbanos.
Fim da abolição, continuidade dos desafios
Mesmo com o fim da abolição, as teorias racistas continuaram a se desenvolver como uma ideologia necessária, agora como arma para continuar garantindo os privilégios dos ex senhores de escravos e para assegurar que a burguesia lucrasse com a divisão dos trabalhadores e a super exploração. A partir da disseminação de uma ideologia racista, é possível explicar porque negros podem ser superexplorados e ao mesmo tempo aumentar a precarização da classe trabalhadora como um todo, aléḿ da própria divisão que se conforma dentro classe dificultando a unidade contra um inimigo em comum.
Num país de burguesia branca, que teve como importante pilar de desenvolvimento a exploração e a opressão de negros escravizados, e que ainda mantém o racismo como forma de aumentar a exploração, a questão negra ganha um peso fundamental. A população negra é parte essencial do proletariado brasileiro tanto em proporção quanto pelo fato de ocuparem os postos mais precarizados. C.L.R. James, um importante revolucionário negro que se dedicou aos estudos da questão racial, diz que os negros devem ser vistos como duplamente explorados, pois são tradados socialmente como cidadãos de segunda categoria.
Os negros pela opressão histórica têm a necessidade de lutar por igualdade social, econômica e política. Dentro da própria classe operária precisam travar uma luta para que possam desempenhar as suas funções nas mesmas condições dos brancos. Essa luta só pode ser levada até o fim com a destruição do sistema capitalista que propaga a ideologia racista como mecanismo de dominação.
Luta de classes e o enfrentamento ao racismo
O fato dos negros hoje serem a maioria racial do país e das camadas populares, do racismo ser fator importante para a exploração da classe trabalhadora como um todo e ser estrutural em toda a conformação do Estado brasileiro, faz com que as demandas negras ganhem extrema importância como elemento que garanta a unidade da classe operária e que poda hegemonizar outros setores da sociedade na luta contra a burguesia.
Para isso é preciso entender as demandas da população negra como parte integrante das pautas levantadas pela classe trabalhadora, pois sem organização e mobilização dos negros no país não pode haver uma revolução socialista. Ao mesmo tempo é preciso que o movimento negro carregue um programa radical e operário contra o racismo e que também levante as demandas democráticas mais elementares que devem ser garantidas ao negros, que seja independente da classe dominante e que possa então se juntar aos trabalhadores brancos para levar a luta contra o racismo.
Sendo assim, se por um lado as demandas, desde as mais elementares, devem ser encaradas também como demandas do povo negro (sem esquecer, é claro, das particularidades enfrentadas), no mesmo sentido a luta por direitos ao povo negro, por ser o o maior o mais explorado setor da classe e a grande maioria dos pobres urbanos, deve ser encarada como uma pauta obrigatória do movimento operário e a luta contra o racismo dever ser também encarada como um enfrentamento central.
A reafirmação da luta contra o racismo no Brasil deve ser parte constitutiva da luta revolucionária da classe trabalhadora pelo socialismo. A relação entre socialismo e fim da opressão racial é tão profunda em nosso país que é impossível garantir um sem o outro. Essa relação indissolúvel não deve nos levar a cometer o equivoco de distorcer o papel revolucionário da classe trabalhadora de conjunto, que tem a ver com o papel que cumpre na produção.
A classe trabalhadora é a única que pode levar o mundo ao êxito da revolução socialista e a demanda de todos os oprimidos, pelo seu papel na produção. Mas, como já vimos na história, é possível revoluções protagonizadas por outros sujeitos e que levem processos e formem Estados profundamente problemáticos e algumas vezes racista, como foi o caso de Cuba. No Brasil, o peso da questão negra pode em momentos específicos romper a barreira da democracia racial e possibilitar a construção de movimentos negros de massa e organizações que se pautam pela questão racial e que afastem os grupos marginalizados. Isso se torna um entrave tão grande a ponto de impedir que a classe trabalhadora hegemonize os setores oprimidos, impedindo um processo revolucionário, ou até mesmo, a tomada de poder como parte do processo da luta contra o racismo sem necessariamente uma perspectiva de superação da sociedade de classe, principalmente se não encontrarem na classe operária organizada revolucionária um aliado.
Trotsky, C.L.R. James já mostravam em 39 e 40 que são sectários os que acham que o movimento negro independente não possa cumprir um importante papel sozinho a partir da luta contra o racismo. Nesses anos na quarta internacional ambos fizeram um importante debate de como poderiam auxiliar na construção de um movimento negro de massas nos Estados Unidos, pois para eles os negros não só podiam como deviam ter suas organizações independentes de combate ao racismo. Nessa condição, o papel dos revolucionários é ajudar esses movimento na luta, ao mesmo tempo que os negros das organizações revolucionárias devem intervir nesses espaços discutindo e defendendo as posições revolucionárias para caminhar junto com o conjunto dos negros a saída inevitável da derrubada do sistema como parte do caminho da luta contra o racismo.
Em 1948 ao fazer uma análise sobre a história da SWP e a questão negra C.L.R. James coloca:
“O proletariado, como sabemos, deve conduzir as lutas de todos os oprimidos e todos aqueles que são perseguidos pelo capitalismo. Mas isso foi interpretado no passado – e por alguns muito bons socialistas também – no seguinte sentido: as lutas independentes do povo negro não tem muito mais do que um valor episódico e como uma apenas um fato, isso pode constituir um grande perigo não só para os negros si, mas para o movimento operário organizado. A verdadeira liderança da luta negra deve repousar nas mãos do trabalho organizado e do partido marxista. Sem isso a luta dos negros não só é fraca, mas é susceptível de causar dificuldades para os negros e perigos para o trabalho organizado. Isso, como eu digo, é a posição defendida por muitos socialistas no passado. Alguns grandes socialistas nos Estados Unidos têm sido associados com esta atitude”.
Nós, por outro lado, dizemos algo completamente diferente
Dizemos, número um, que a luta dos negros, a luta dos negros independente, tem uma vitalidade e uma validade própria; que tem raízes históricas profundas no passado da América e em lutas atuais; ela tem uma perspectiva política orgânica, ao longo do qual ela está viajando, em um grau ou outro, e tudo mostra que no presente momento ele está viajando com grande velocidade e vigor.
Nós dizemos, número dois, que esse movimento negro independente é capaz de intervir com força terrível sobre a vida social e política geral da nação, apesar do fato de que ela é travada sob a bandeira dos direitos democráticos, e não é levada necessariamente pelo movimento operário organizado ou pelo partido marxista.
Nós dizemos, número três, e isso é o mais importante, que é capaz de exercer uma poderosa influência sobre o proletariado revolucionário, que ela tem uma grande contribuição a dar para o desenvolvimento do proletariado nos Estados Unidos, e que é em si uma parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Desta forma, desafia diretamente a qualquer tentativa de subordinar ou para empurrar o significado social e político da luta dos negros pelos direitos democráticos. Essa é a nossa posição. Era a posição de Lenin há trinta anos atrás. Era a posição de Trotsky, que ele lutou durante muitos anos. Tem sido concretizado pela luta de classes em geral nos Estados Unidos e pelas tremendas lutas do povo negro. Tem sido afiada e refinada pela controvérsia política em nosso movimento, e o melhor de tudo, teve o benefício de três ou quatro anos de aplicação prática na luta dos negros e na luta de classes pelo Partido Socialista dos Trabalhadores durante os últimos anos .
Agora, se essa posição atingiu a fase em que podemos colocá-la de frente na forma que propomos, o que significa que, para entende-la deve ser mais simples agora do que antes. Se, em vez de meramente observar a questão negra, o povo negro observar as lutas já feitas e as suas ideias, somos capazes de ver as raízes desta posição de uma forma que era difícil ver 10 ou mesmo 15 anos atrás. O povo negro, podemos dizer, com base em suas próprias experiências, aborda as conclusões do marxismo. E eu vou brevemente ilustrar isso como foi mostrado na Revolução.
Em primeiro lugar, sobre a questão da guerra imperialista. O povo negro não acredita que as duas últimas guerras e aquelas que podem nos alcançar, são resultado da necessidade de lutar pela democracia, pela liberdade dos povos perseguidos pela burguesia americana. Eles não podem acreditar nisso. Sobre a questão do Estado, o negro particularmente abaixo da linha Mason-Dixon, acredita que o Estado burguês é um Estado acima de todas as classes, atendendo às necessidades de todas as pessoas? Eles não podem formular sua crença em termos marxistas, mas a sua experiência os leva a rejeitar esta besteira da democracia burguesa.
Sobre a questão do que é chamado de processo democrático, os negros não acreditam que queixas, dificuldades de setores da população são resolvidas por discussões, por votações, por telegramas ao Congresso, pelo que é conhecido como o “American Way”.
Finalmente, sobre a questão da ação política, a burguesia americana pregou que a Providência, na sua sabedoria divina, decrete a existência de dois partidos políticos nos Estados Unidos, não um, não três, não quatro, apenas dois; e também em sua bondade a Providência demonstrou que estas duas partes devem ser um, o Partido Democrata e do outro, o Republicano, para durar a partir de agora até o fim dos tempos.
Isso está sendo desafiado por um número crescente de pessoas nos Estados Unidos. Mas os negros mais do que nunca, os negros demonstraram que, a partir das suas atividades, estão dispostos a fazer a ruptura completa com essa concepção.
Como bolcheviques nós temos certeza, não apenas teoricamente, mas na prática, da importância do papel do movimento operário organizado em todas as lutas fundamentais contra o capitalismo. É por isso que, durante muitos anos no passado esta posição sobre a questão negra tem tido alguma dificuldade em encontrar-se completamente aceita, particularmente no movimento revolucionário, porque não há essa dificuldade – o que é a relação entre este movimento e o papel primordial do proletariado – especialmente porque muitos negros, os mais disciplinados, endurecidos, treinados, desenvolveram seções negras e estão hoje no movimento operário organizado.
Os negros dos EUA, assim como os negros no Brasil têm uma extrema desconfiança da esquerda, foram traídos pelos PCs estalinizados e por outras diversas organizações ainda hoje, como é o caso do PT. Os negros olham para as organizações hegemonicamente brancas com muito receio, pois suas grandes referencias romperam com a esquerda e foram parte de processos de criação de organizações negras. Eles nos questionam: a tomada do poder e a planificação da economia acaba com o racismo? Nós devemos responder sinceramente que não, no longo caminho que trilhamos para a revolução é precismo manter o combate ao racismo para que depois de acabar com as bases materiais que ainda o impõe na vida de todos, consigamos dar um combate final extinguindo a ideia de supremacia branca. As mudanças materiais somente abrem espaços para as necessárias mudanças culturais dessa nova sociedade que queremos construir.
A Revolução é permanente também nesse sentido. Ela não é só a tomada do poder, mas as lutas e combates que traçamos antes, durante e depois. Uma sociedade igualitária também depende dos caminhos que traçamos. Nesse sentido, se a questão racial e o combate ao racismo não for um elemento presente em todo o processo, acredito que seja difícil que o seja depois da tomada do poder. As lutas andam juntas, correndo o risco, de se separadas, não chegarem à vitória.
Essa problemática exige dos revolucionários e da vanguarda da classe operária uma dedicação ainda maior para com a questão racial. É preciso combater o racismo no seio da classe, e desde já levantar discussões nos sindicatos e protagonizar lutas contra toda a forma de racismo, dar pequenos exemplos de como os trabalhadores devem enfrentar o racismo, ao mesmo tempo que atuam de forma estratégica no movimento negro.
Para as organizações revolucionárias, o exemplo da SWP (organização da quarta internacional nos EUA) deve servir de guia inicial. É preciso aprofundamento teórico sobre a questão, formação de quadros negros revolucionários e uma dedicação profunda de toda a organização para a educação de todos os membros sobre esse assunto. É possível encontrar as principais discussões nos documentos internos do Congresso de 1939 e em suas resoluções sobre a questão racial nos Estados Unidos².
“O SWP propõe, assim, a constituir um departamento Negro nacional que irá iniciar e coordenar um plano de trabalho entre os negros e exorta os seus membros a cooperar tenazmente na difícil tarefa de abordar esta obra, da forma mais adequada. Nossas tarefas óbvias para o próximo período são: (a) a educação do partido; (b) ganhar os negros politicamente mais avançadas para a Quarta Internacional; e (c) através do trabalho do partido entre os negros e em domínios mais vastos, influenciando as massas negras a reconhecer no SWP o único partido que é realmente trabalhar para a sua emancipação completa dos fardos pesados que suportaram tanto tempo. A conquista de massas de negros para o nosso movimento em uma base revolucionária não é, no entanto, tarefa fácil. Os negros, que sofrem intensamente das dificuldades gerais de todos os trabalhadores sob o capitalismo, e, além disso, a partir de problemas específicos, são naturalmente hesitantes em tomar a iniciativa de aliar-se com um pequeno e fortemente perseguido partido. Mas o trabalho Negro é complicado por outra, mais profunda, razão. Por razões que podem ser facilmente compreendidas, o negro americano é profundamente desconfiados de todos os brancos, e os acontecimentos recentes têm aprofundado essa suspeita.”³
A chave revolucionária para hegemonia operária no Brasil é conseguir unificar as pautas específicas do povo negro a um programa transicional que seja capaz de mostrar as entranhas do capitalismo e colocar para a classe trabalhadora a necessidade de cumprir sua tarefa histórica. Ao mesmo tempo é preciso quadros negros, com formação e disposição para organizarem seu pares como parte do movimento negros, formando uma coluna revolucionária que paute de forma consequente a luta anti racista e a unidade dos oprimidos contra a classe dominantes.
Muitas coisas ainda precisam avançar, tanto na proposição da luta quanto na prática, mas é preciso se agarrar ao que temos de mais avançado para podermos construir a luta pela emancipação de negros e negras e da humanidade.
1. lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, foi a primeira iniciativa no sentido de organizar a propriedade privada no Brasil.
2. https://www.marxists.org/archive/trotsky/works/1940/negro1.htm
3. https://www.marxists.org/history/etol/document/swp-us/3rdconvention/swp01.htm