Texto: Ézio Rosa / Ilustração: Moska Santana
Durante praticamente todos os (poucos) anos de vida, tentei encontrar um nome para as situações rotineiras que aconteciam comigo e com outra parcela específica da sociedade. O racismo tem muitas nuances e por isso nem sempre o percebemos como tal. Por esse motivo só comecei a me importar de fato com questões raciais (para além de evitar práticas racistas), quando entendi que as situações pontuais que marcam meus dias de segunda à segunda tinham nome sim; racismo!
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Situação 1
Subo no ônibus sabendo que mais uma vez as pessoas vão me olhar como se eu fosse a criatura mais espetaculosa do picadeiro. Os fones de ouvido tornam a viagem menos pior. Muitas vezes pego o ônibus no ponto final, podendo então escolher o lugar em que vou sentar. O busão enche como de costume e o único lugar que está vazio é o do meu lado. Quando as pessoas começam se espremer nos corredores, enfim alguém se senta no banco vazio.
Se eu não dependesse do transporte público todos os dias da minha vida e não visse essa cena se repetir dia sim, dia não, até pensaria que é coisa da minha cabeça.
#SeráQueÉRacismo?
Situação 2
Uma vez fui até o prédio da prefeitura de São Paulo para assinar uma contratação artística e a atendente branca não permitiu minha entrada. Me perguntou mais de uma vez o que eu iria fazer no 11º andar e só quando deram um ok lá de cima, tive o acesso permitido.
Um ponto a se destacar é que durante os minutos de espera, a mesma liberou várias outras pessoas a entrarem no prédio. Estas não passaram pelo procedimento “padrão” pelo qual eu passei.
Será que não faço o estilo padrão prefeitura? Risos
#SeráQueÉRacismo?
Situação 3
Durante a minha ultima ida ao Rio de Janeiro, uma gringa veio até onde eu estava dançando com um grupo de amigos e pediu para “experimentar” meu cabelo. Seja lá o que ela quis dizer com isso, ser exotificado não é legal.
Seria bacana poder circular por aí tranquilamente sem essas abordagens invasivas.
#SeráQueÉracismo?
Situação 4
Ter o fenótipo e a textura capilar ridicularizados acontece desde que me entendo por gente. Eu demorei para dar nomes aos bois, mas hoje em dia não me engano mais.
O cabelo crespo incomoda muita gente, os xingamentos e as “brincadeiras” não têm local nem horário para acontecer. Eu posso estar no ponto de ônibus, na fila do mercado, na praia, no hospital (SIM no hospital!), na minha rua ou em qualquer outro lugar. O agressor (sobretudo homens hétero) adoram fazer uma piadinha para enaltecer sua masculinidade, e aí os apelidos são vários; cotonete, Jackson Five, microfone, cabelo duro, cabelo ruim, peruca e por aí vai.
Para além do cabelo crespo, ter o nariz largo e a boca grande também é um prato cheio para os piadistas de plantão (leia-se racistas e homofóbicos).
Durante uma aula de ciências, a utilização de um livro ilustrado é a pedida para que as crianças encontrem os animais e os comparem com seus amigos. É claro que os meninos brancos vão ser comparados com o leão, o gato ou outro animal considerado majestoso. Eu fui comparado com um daqueles macacos brancos sabe?
É lógico que os colegas de pele escura foram bem mais humilhados pelos demais pré-aborrecentes. E a cereja do bolo nesta situação foi o silêncio da professora que estava na sala de aula.
#SeráQueÉRacismo?
Mesmo depois das quatro situações relatadas, ainda há quem diga que racismo não existe, ou então, “mas você não é negro”! Para além de como nós nos identificamos, temos que nos preocupar como é que nós somos vistos pelo Estado. Este sim, sabe muito bem quem é preto e quem não é.
Ter a pele clara significa carregar consigo o grande privilégio de ter dúvidas de quem nós somos de origem, já que aos negros de pele escura não cabe a duvida. Ter dúvida significa que podemos transitar pelos espaços com nossa identidade embranquecida e com isso acessar espaços que negros retintos não acessam.
O que deixa a casa grande louca é quando nós, negros de pele clara, tomamos conhecimento desta identidade e a enaltecemos. Para eles é inaceitável que estejamos tomando consciência de questões relacionadas à raça, pois tendo a pele clara, poderíamos nos passar por brancos ou pardos, mas não! Não queremos e nem vamos nos passar por algo que não somos.
Entre nós negros existem muitas especificidades, e o tom de pele é uma delas. Ser quase negro ou sofrer quase racismo não existe! E por esse motivo eu me posiciono, porque não posso ser pela metade. Bem que eu gostaria de ter a opção de sofrer só metade da homofobia, ou só metade do racismo, mas sabendo que o racismo e a héteronorma são estruturantes em nossa sociedade, isso seria como desejar uma piscina no deserto.
O mito da democracia racial tem criado muitos negros que se acham brancos e também muitos afroconvenientes. Saiba quem tu és! Tome conhecimento da sua história e reconheça seus privilégios. Ser quem se é em essência deveria ser inerente ao ser humano.
A todas as Bichas Nagô força na caminhada!