A Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas lançou nesta quinta-feira (15) a primeira publicação nacional da organização que traz um panorama das medidas de reparação e justiça do país, e análises sobre como a atual política de drogas contribui para um cenário de injustiças criminais e de aprisionamento em massa da população negra, que resulta em violações de direitos e mortes.
O novo estudo também apresenta seis recomendações para mudanças legislativas e institucionais, baseadas no critério da Justiça de Transição da Organização das Nações Unidas (ONU), que, se adotadas pelo poder público, a organização avalia que poderão reduzir o impacto das desigualdades e do racismo praticado pelo Estado sob o pretexto da guerra às drogas.
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1 – Construção da memória, justiça e verdade
Sugestão de criação de uma comissão da verdade para investigar fatos e a incidência de países estrangeiros em projetos de guerra às drogas; averiguação e responsabilização sobre casos, como por exemplo, a participação de agentes do Estado em crimes contra a humanidade e ainda a averiguação de casos de pessoas desaparecidas em conflitos envolvendo a política de drogas.
2 – Reparação às comunidades afetadas
Faz parte das medidas de reparação o reconhecimento formal do Estado brasileiro às famílias que tiveram filhos vitimados ou encarcerados dentro da lógica da guerra às drogas, com o oferecimento de uma reparação financeira.
3 – Anistia a pessoas envolvidas no conflito
Anistiar pessoas presas por tráfico de drogas será um grande passo para um processo de desencarceramento em massa da população mais afetada pela lógica da guerra às drogas, a juventude negra. Esse processo, considerado urgente pela organização, deve ser estabelecido junto a mediações locais continuadas e alternativas que permitam processos reconciliatórios entre pessoas autoras e vitimadas pela violência, garantindo reinserção e repactuação em territórios e processos de promoção da paz.
4 – Mudanças legislativas e institucionais para o fim do conflito
É preciso o esforço político e legislativo para que sejam feitas mudanças que possibilitem o fim do conflito hoje justificado pela proibição das drogas.
5 – Melhoria nas leis para drogas lícitas
Propõe-se a regulamentação de toda a cadeia produtiva das drogas lícitas, aprimorando as normativas existentes para álcool, tabaco e medicamentos, interferindo inclusive nas regras de publicidade dessas substâncias.
6 – Regulamentação da cannabis com vistas nos passos anteriores
A Iniciativa Negra reforça a importância de discutir a legalização e a regulação de um mercado canábico que garanta e privilegie a produção pela agricultura familiar, em modelos de impacto e de redistribuição financeira que gerem trabalho e renda nos territórios. É necessária a discussão sobre a participação de pessoas anistiadas pela nova política de drogas neste mercado regulamentado, levando em consideração os modelos aprovados ou em processo de aprovação em outros países.
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O relatório apresenta análises sobre o amplo conceito de reparação, pouco discutido quando relacionado à política de drogas, o levantamento de marcos conceituais, iniciativas legislativas e políticas públicas de reparação formuladas ou já em vigor em São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Bahia e Distrito Federal.
O trabalho permitiu identificar medidas e expectativas que possam nortear as ações para a construção de uma política de reparação mais justa e efetiva para os grupos mais impactados pela lógica da atual guerra às drogas.
“Há um entendimento de que o Estado brasileiro precisa ser responsabilizado por todas as injustiças cometidas contra o povo negro. Mas, para que isso se torne uma medida real e que seja realmente efetiva para todos, precisamos nos debruçar sobre esse tema com dados e produção de conhecimento, só assim, será possível reparar todos os danos sofridos nos territórios”, afirma a socióloga, diretora e co-fundadora da Iniciativa Negra, Nathalia Oliveira.
“A pauta da reparação é ainda muito pouco desenvolvida, principalmente quando trazemos o assunto para o campo jurídico. Entendemos que o avanço dessa pauta só será possível quando a olharmos sob a lógica do racismo e da guerra às drogas, ou seja, o principal argumento do Estado para marginalizar e vitimar a população negra do país”, complementa o historiador e co-fundador da Iniciativa, Dudu Ribeiro.
Políticas sobre drogas nos estados
A pesquisa sobre legislações e políticas públicas foi pautada pela identificação de projetos de lei, políticas e programas destinados às pessoas vítimas de injustiças criminais com perfilamento racial. Foram elencados atos de compensação, indenizações, garantia da memória de pessoas vitimadas por injustiças e violações de direitos praticadas pelo Estado, no esforço de apontar tendências e novas perspectivas de atuação.
Não foi possível identificar políticas públicas e programas sobre uso de drogas, legislações e projetos de leis sobre reparação para vítimas de injustiças criminais nos Estados incluídos na pesquisa.
São Paulo
No Estado, a atual política sobre drogas segue parâmetros da lei federal nº 13.840/2019, que estimula o trabalho das comunidades terapêuticas, a associação do uso de drogas com ações de repressão policial e a substituição das políticas de redução de danos por medidas de abstinência e internação compulsória, medidas que têm causado uma série de episódios de violência em cenas de uso de crack, por exemplo.
Sobre as medidas de reparação pecuniária, isto é, quando existe uma vítima determinada, o Estado dispõe de projetos de reparação que compreendem não somente o indivíduo, mas que dialogam com a perspectiva do direito à memória e não repetição de episódios de violações.
Merecem destaque dois textos de lei. Primeiro, a lei nº 15.501/2014, que institui a Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violência no Estado de São Paulo, entre os dias 12 e 19 de maio, período que tem sido utilizado pelo movimento de mães e familiares de vítimas da violência policial. Segundo, o decreto nº 64.145/2019, que autoriza o pagamento de indenização para vítimas do massacre na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, ocorrido em 2019 e que resultou na morte de sete pessoas.
Rio de Janeiro
Neste Estado, foram identificadas poucas ações voltadas para os usuários de drogas. As ações, em sua maioria, envolvem as forças de segurança pública, como a iniciativa Amanhecer Solidário, que recolhe pessoas das ruas, e o Despertar: sou feliz sem droga e sem violência, uma ação dentro da rede da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) com palestras ministradas por profissionais da segurança pública para 30 mil alunos em 82 unidades de ensino.
E sobre as ações de reparação já existentes, o Rio de Janeiro incluiu em seu calendário, por meio da lei nº 7.637/2017, a Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violência no Estado, entre os dias 12 e 19 de maio. Existem ainda outras duas iniciativas públicas que dialogam sobre a perspectiva de reparação: a) a criação da Secretaria de Estado de Atendimento à Vítima (Seavit), com o funcionamento de uma superintendência de apoio à vítima de violência e familiares; b) o Centro Especializado de Atenção às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais no Poder Judiciário, instituído pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2021.
Pará
Em Belém do Pará, foram levantadas ações para usuários de drogas geridas pela Comissão Permanente de Prevenção às Drogas (Copred), órgão vinculado à Assembleia Legislativa do Estado e que pauta sua atuação a partir de valores morais e cristãos, bem como pela ação das comunidades terapêuticas, que instituíram um dia em sua homenagem no calendário municipal de Belém, em 16 de outubro.
Como medida reparatória, o Estado do Pará estabeleceu em junho de 2008 o pagamento de uma pensão especial para mães e familiares das vítimas do crime conhecido como “meninos emasculados de Altamira”, ocorridos entre os anos de 1989 e 1993.
Análises e percepções nos territórios
Entre as dinâmicas territoriais observadas nos Estados, tiveram destaque o sistema prisional, a violência policial, os impactos gerados pelos megaprojetos, as comunidades terapêuticas e a perseguição a usuários de drogas.
Bahia
O Estado com a maior presença de pessoas negras fora do continente africano também é o mais letal da região Nordeste, nele ocorrendo a maioria dos casos com vítimas negras. A análise reforça a relação historicamente estabelecida no Estado entre violência e perfilamento racial.
Distrito Federal
Na capital do país, o fato preponderante foi a desigualdade social que impede o acesso das populações mais vulneráveis às políticas públicas e empurra essas pessoas para o sistema prisional. Brasília, cidade-estado, possui sete unidades prisionais e registra recorrentes casos graves de violações de direitos humanos, trazendo impactos sem precedentes para a vida do preso e de seus familiares.
Pará
No Estado, é notória a existência de intensa disputa de territórios por grupos criminais, registrando o maior número de vítimas por mortes violentas da região Norte. A situação é agravada pela presença de grandes empreendimentos e megaprojetos atraídos pela Amazônia Legal, com a atuação de mineradoras, hidrelétricas, atividades de garimpo e confrontos nas fronteiras.
São Paulo
A presença violenta da polícia no Estado ocorre sob a alegação de necessária para a conhecida guerra às drogas, e serve de argumento para a criminalização e a morte de pessoas negras. Os seguidos governos paulistas acumulam alto investimento financeiro na lógica do combate às drogas, mas é o Estado que enfrenta a Cracolândia, atualmente considerada a maior cena de uso da América Latina. Tornou-se o mais grave problema da questão, complexa e intrincada, sendo, por isso, um dos principais alvos das forças de Segurança Pública.
Rio de Janeiro
No Rio, ganha maior relevância a violência dos agentes do Estado como regra e o uso do território como laboratório para políticas de repressão contra a população negra e empobrecida.
O que dizem as vítimas de injustiças criminais sobre reparação?
Os relatos presentes nas entrevistas e rodas de conversa apontam os impactos desproporcionais da guerra às drogas sobre a população negra em geral e a urgência de medidas reparatórias.
“Quando você escuta ‘polícia vai entrar’ é o medo que você sente, então acho que tem esse processo de construção de imagético mesmo do Estado como opressor, violento”, relata uma mulher negra de 28 anos, no Rio de Janeiro.
“A gente sofreu na região aqui da Cracolândia, na verdade uma destruição de todos os equipamentos que tinha, né, foram se fechando os hotéis, foram se fechando os espaços de convivência, de cuidado com a saúde e a única coisa que eu acho que tem de ferramenta pública pra específico assim pra população é o Cratod (Centro de Referência de Atendimento a Tabaco, Álcool e Outras Drogas), é o único serviço”, afirma mulher atuante na Cracolândia, em São Paulo.
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