Há anos, o Dia Internacional das Mulheres, fruto do feminismo europeu, é questionado por ativistas negras e demais movimentos de mulheres por ter na sua origem pautas centralizadas exclusivamente na luta das mulheres cis brancas trabalhadoras, sem levar em consideração as agendas que englobam as mulheres negras, travestis e trans e os seus espaços, ou a falta deles, na sociedade.
Um dos movimentos que surge para contrapor o feminismo dito tradicional é o transfeminismo, que tem como vertente discutir questões voltadas para as transfeminilidades a partir do questionamento da biologização do corpo e da binaridade de gênero, conforme explicou a ativista e comunicadora, Jarda Araújo, ao podcast Papo Preto, da Alma Preta Jornalismo, em março do ano passado.
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“Ele [o transfeminismo] surge inicialmente porque foi-se percebido assim como, por exemplo, o movimento de mulheres negras ou feminismo negro, que as pautas que eram discutidas, infelizmente, não abarcavam a nossa população de mulheres trans e travesti então foi se necessário pensar uma vertente que englobasse as nossas questões e desse jeito surge o transfeminismo”, explicou a ativista.
“Mulher, negra, ameríndia e transgênera, nessa ordem de importância”. É assim que a ativista Neon Cunha se apresenta por considerar que o marcador racial é o que direciona o seu olhar para o mundo.
Ela destaca que a cisgeneridade parte de uma construção da branquitude e cita a importância do discurso “E eu não sou uma mulher?”, da abolicionista e ativista afro-americana, Sojourner Truth, ao levantar as discussões sobre a equidade de gênero em um período em que as mulheres negras não eram consideradas mulheres.
“Eu não consigo aplicar a lógica cis a uma mulher negra. Em algum momento, essa mulher negra é desqualificada. É estrutura, é subjetividade, muitas não consideram a gente […] Quando você vê as construções que partem da branquidade ou da branquitude, não corresponde para mim ao que as mulheres negras estão produzindo. Como diria a Neusa [Santos], ‘tornar-se negra’ também é um processo”, comenta.
Para além da importância da data e de se pensar nas opressões que atingem as mulheres cis, mulheres trans propõem que o #8M também seja discutido pelo viés da interseccionalidade e das pautas que permeiam a população trans e travesti. Pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, segundo dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
No ano passado, foram registradas 151 mortes de pessoas trans, sendo 131 casos de assassinatos e 20 suicídios. Em relação ao perfil racial das vítimas, pelo menos 76% eram travestis/mulheres trans negras (pretas e pardas, segundo o Estatuto da Igualdade Racial). Ao analisar a proporção, a média de pessoas trans negras assassinadas é de 79,8%, enquanto para pessoas brancas o índice cai para 20%. Em 2022, assim como no ano anterior, a ANTRA também registrou o assassinato de uma travesti indígena.
Para a militante e presidenta do PSOL em Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, Nega Van, é preciso pensar em políticas públicas que garantam direitos para a população trans e travesti desde o período escolar, como o direito à retificação do nome, garantido pelo decreto nº 8.727, assinado em 2016 pela então presidenta Dilma Rousseff.
“Menos de 1% da população trans e travesti ocupa as universidades no Brasil e 82% da população trans e travesti não conclui o ensino fundamental no Brasil e isso se dá por uma violência. Não é evasão escolar, é expulsão escolar. Somos expulsas desses espaços de poder, a começar pela negação do nosso nome social”, comenta Nega Van.
Segundo a ativista, primeira travesti no Brasil eleita presidente de um partido político, também é urgente assegurar segurança e oportunidades, especialmente para as mulheres trans e travestis, que são as mais expostas à violência e marginalização, segundo o último relatório da ANTRA.
“A maioria das mulheres trans e travesti estão na prostituição compulsória porque esse é o único lugar que a sociedade quer nos ver: nas esquinas, à noite, nos tendo como objeto sexual. O Brasil é o país que mais mata a população trans e travesti no mundo pela 14ª vez consecutiva e também é o país que mais consome pornografia e prostituição trans e travesti. Há uma hipocrisia e um contraponto porque na maioria das vezes o mesmo que vai lá e paga você para fazer um programa é o mesmo que te mata”, destaca.
Caminhos
Para as ativistas, é preciso descentralizar a cisgeneridade da pauta das mulheres e pensar em movimentos que levem em consideração todas as mulheridades em suas individualidades.
“É preciso pautar políticas públicas para as mulheres trans porque somos as mais vulneráveis na escala. Primeiro vêm as mulheres brancas, depois as mulheres pretas, depois as travestis brancas e depois as travestis pretas. Nós somos as últimas. As mais violentadas. O racismo anda de mãos dadas com a transfobia. É preciso as mulheres cis brancas enxergarem isso e ajudar a apoiar as mulheres cis negras, as mulheres trans negras e as travestis porque somos excluídas da pauta do feminismo”, destaca a ativista e presidenta do PSOL em Porto Seguro (BA), Nega Van.
Já Neon Cunha propõe o olhar para a primeira infância, através do investimento em educação e dignidade humana, como forma de transformação social. “A gente vai ter que olhar para a base da sociedade e a base é a primeira infância. São milhares de acessos para além da família para que esse sujeito tenha a condição estrutural de decisão da sua autonomia de vida”, afirma.
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