“Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro” e “O Mundo é o Teatro do Homem” são os nomes das duas novas exposições inauguradas no último sábado (19) em Inhotim, museu localizado em Brumadinho/MG, a 60 km de Belo Horizonte. As mostras dialogam com a pesquisa iniciada pela instituição em 2021, em parceria com o Ipeafro, sobre a trajetória de Abdias Nascimento e do Museu de Arte Negra, parte de um movimento que busca uma maior presença e valorização de artistas negros no espaço do museu.
As duas novas exibições – que vão até 16 de julho de 2023 – partem conceitualmente do jornal “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, editado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) e que contou com dez edições publicadas entre 1948 e 1950. Artista, poeta, dramaturgo, político, ativista e idealizador do TEN, Abdias Nascimento e o seu Museu de Arte Negra são celebrados em uma mostra em Inhotim que já está em seu segundo ato, chamada “Dramas para negros e prólogo para brancos”.
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O segundo ato da exposição foi aberto em maio de 2022 na Galeria Mata do Inhotim e pode ser conferido até fevereiro de 2023. A exibição de Abdias apresenta questões sobre o TEN, representatividade e auto representação, temas que também se desdobram nas mostras inauguradas em novembro.
A nova mostra exposta na Galeria Lago do Inhotim com o mesmo nome do jornal Quilombo faz alusão à publicação e propõe um resgate de conceitos e temas abordados pelas edições do jornal. Cinco núcleos compõem a mostra: “Novo poder: reformulando uma vanguarda”; “Vidas públicas”; “Vida e aspirações do negro”; “Elas Falam” e “Reescrita da história: construção e afirmação da identidade”.
De acordo com Deri Andrade, curador assistente do Inhotim, os núcleos resgatam um pouco do que o próprio jornal Quilombo estava propondo enquanto discussão em sua época de existência, mas que são temas ainda recorrentes.
“A gente tem percebido como esses trabalhos, de alguma maneira, lidam com esses temas [do jornal Quilombo] de forma muito ampla, muito diversa. A gente tende a achar que artistas negros estão só interessados em discutir sobre questões raciais, mas a exposição tem outros trabalhos que, de alguma maneira, também resgatam temas discutidos pelo Quilombo, que trazia a tentativa de uma reconstrução da história do país, principalmente a parte desse protagonismo negro”, explica Deri Andrade.
Curador assistente Deri Andrade | Imagem: Nadine Nascimento/Alma Preta Jornalismo
O curador assistente do Inhotim também explica que, dentre as muitas questões abordadas pelo Quilombo, o primeiro núcleo da exibição busca falar sobre a nova vanguarda, que faz referência a como o jornal trazia a biografia de figuras negras importantes para a luta contra a escravidão no Brasil. Já o núcleo sobre as mulheres na exibição tem como referência o papel de Maria Nascimento na história do jornal.
“Ela foi uma das fundadoras do Teatro Experimental do Negro e também escreveu uma coluna que se chamava ‘Fala a Mulher’, que depois se chamou ‘Escreve a Mulher’. Ela também foi responsável pelo Conselho das Mulheres Negras do Brasil, foi responsável por uma série de pautas e reivindicações. Então nesse núcleo da exposição a gente tem a força dessas mulheres negras e artistas”, explica Deri.
Entre os 34 artistas e coletivos que integram a exposição da Galeria Lago, como Arjan Martins e Erica Malunguinho, figuram obras adquiridas para a coleção do Inhotim de Panmela Castro, Maxwell Alexandre, Mulambö, Antonio Obá, Wallace Pato, Desali, Paulo Nazareth, Kika Carvalho e Zéh Palito, entre outros.
A educadora, deputada estadual por São Paulo e artista plástica Erica Malunguinho tem seu trabalho exposto na exibição com a série de fotos-performance “Engoli facas pari caminhos”, concebida quando a deputada tentava barrar um projeto de lei, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que proibia publicidade com pessoas LGBTQIA+.
“[O trabalho representa] a introjeção de violência e de dores e de como essas dores se processam dentro dos nossos organismos e o que a gente devolve a partir disso”, conta a artista plástica, que também é embaixadora do Museu de Arte Negra, gerido pelo Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros), instituição também encabeçada por Abdias.
Obra de Erica Malunguinho no Inhotim | Crédito: Nadine Nascimento/Alma Preta Jornalismo
Segundo Erica, a cultura brasileira é um exemplo da introjeção de violências e o conjunto artístico e material do povo brasileiro foi construído por atravessamentos que partiram disso.
“Não quero romantizar isso, mas a estratégia e a tecnologia que nós utilizamos é organizar e transformar essas violências em arte, intelectualidade e força vital. Então essa série fala disso. Nesse momento de dor difícil, entram dores e o que eu coloco para fora é aquele vômito, aquele grito, aquele berro… florido. E não pense que isso é tão dócil, que isso é tão bonito apenas. Isso é carregado de fúria, mas de uma fúria muito bem organizada para ser propositiva”, explica.
A pluralidade sexual e de gênero estiveram somadas ao grupo que compõe a nova exposição do Inhotim por meio também das contribuições de Rafael Bqueer e Ros4 Luz, que estão entre os artistas expositores.
“São trabalhos que estão reivindicando um espaço. A Rosa está reivindicando o lugar dessa mulher negra, trans. A Rafa vai trazer aquela série de personalidades que foram importantes para o movimento LGBTQIA+. São trabalhos potentes que tem muito a falar e, de alguma maneira, isso vai passeando pela exposição”, conta Deri Andrade.
Sobre as vozes plurais evidenciada na exposição, Erica Malunguinho complementa que dentro do processo histórico, considerando a luta das mulheres negras no sustento de sua família, inevitavelmente se caminhou e se caminha para um aprofundamento e radicalização dos padrões da normatividade, trazendo e colocando as pessoas trans dentro do centro de discussões também.
“Nós somos vanguarda. Então, acho que isso faz parte do nosso povo, da perspectiva de se ressignificar, se rever, reaprender e se abrir pra inevitável fonte da vida e da natureza que é a diversidade”, pontua.
Além do jornal Quilombo, a exposição na Galeria Lago apresenta documentações, que destacam outras publicações da imprensa negra no Brasil, como O Menelick, O ‘Clarim d’Alvorada, a revista Ébano e a revista Raça.
Já na Galeria Fonte do Inhotim, estreou a mostra “O Mundo é o Teatro do Homem”, com obras de Jonathas de Andrade e da dupla Barbara Wagner e Benjamin de Burca. A exposição se desenvolve ao redor da relação entre a prática teatral, formação artística e cidadã e ativismo social. O ponto de partida também é o legado do Teatro Experimental do Negro (TEN). Nessa mostra, ganha destaque também a aproximação do TEN com a prática do psicodrama, método teatral e terapêutico desenvolvido pelo médico romeno-austríaco Jacob Levy Moreno.
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Protagonismo negro em todos os espaços
Durante a inauguração da mostra, o artista Maxwell Alexandre fez uma publicação nas redes sociais se posicionando contra a presença de sua obra entre os trabalhos expostos. Ele comenta que repudia a inserção da obra “sem título” da série Novo Poder, de 2021, na mostra e pede a retirada do trabalho da exposição. Ele relata sentir um constragimento com exposições temáticas sobre o negro.
Obra de Maxwell Alexandre no Inhotim | Imagem: Nadine Nascimento/Alma Preta Jornalismo
“Eu não sei mapear com plenitude o porquê disso acontecer. Eu não nego a importância de tematizar e falar sobre ser negro e tudo que isso implica. A única maneira de lidar com legitimidade e tentar diminuir erros tão grotescos seria ter na equipe do projeto o máximo de pessoas negras, principalmente em cargos altos de poder decisivo. Mas isso não é o que acontece nas grandes instituições”, conta na publicação.
Além disso, o artista também critica o fato da outra nova exposição de novembro, na Galeria Fonte, ter apenas três artistas brancos, enquanto a mostra “Quilombo” reúne mais de 30 artistas negros em apenas uma galeria.
“Inhotim é reconhecido por seus pavilhões, galerias e projetos individuais e ambiciosos de artistas brancos. Ao trazer Abdias do Nascimento para o centro de sua programação, em seu segundo ato, eles resolveram criar uma divisão com essas duas exposições, é bem estranho. Estamos falando de um lugar que não tem protagonismo preto. No momento em que, já atrasados, decidem finalmente dar algum espaço, enfiam todos nós numa galeria, numa exposição temporária”, também comenta.
Sobre isso, o curador assistente do Inhotim Deri Andrade e o departamento de comunicação do inhotim comentam que, assim como a obra exposta de Maxwell Alexandre, o Inhotim vem fazendo aquisições periódicas de autores, pintores e artistas negros no geral.
“A gente acredita que essa é uma exposição muito do coletivo. A gente tem pensado essa exposição como um dos legados do Abdias, principalmente, porque não à toa a gente justamente intitula a exposição com o mesmo título, uma referência direta ao jornal, sem qualquer tipo de alteração, porque a gente vai entender esse jornal como trazendo uma série de questões que o próprio trabalho, inclusive do Maxwell, coloca, quando ele vai chamar essa série de Novo Poder”, explica Deri Andrade.
Obra de Panmela Castro no Inhotim | Imagem: Edouard Fraipont
Segundo o curador assistente da instituição, o fato do Inhotim estar interessado na aquisição desses trabalhos diz muito sobre como o Inhotim está olhando daqui pra frente. “A própria programação feita junto com o Ipeafro, de forma colaborativa, é novidade para o instituto nessa maneira de trabalhar e de pensar seu projeto e sua programação curatorial. O fato desses artistas estarem aqui reunidos nesta única apresentação aqui, diz muito sobre isso, dessa retomada desse lugar, desses espaços institucionais que são realmente brancos”, complementa.
Sobre a presença de mais profissionais negros pensando nas criações das mostras e exposições dentro do Inhotim, conforme pontuado por Maxwell em sua publicação, o departamento de comunicação do inhotim destaca que esse é um ponto que deve mesmo estar em discussão. “Isso já vem acontecendo. Uma mudança que não é só no Inhotim, mas é uma mudança no panorama museológico de forma geral, sobre a importância de se trazer outras pessoas para dentro das instituições em outros cargos”, explica.
Em relação a permanência da obra de Maxwell na mostra, a equipe do museu se posicionou dizendo que “a retirada da obra, que faz parte do acervo da instituição, não foi possível diante de um projeto curatorial que já estava em processo de montagem e andamento, conforme informações repassadas ao artista.”
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