Por: Barbara Martins Alves dos Santos e Izabella de Menezes Passos Barbosa*
Os dados mais recentes sobre estupro no Brasil indicam um aumento significativo de ocorrências no país. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foram registrados 74.930 casos de estupro. A maioria das vítimas (61,4%) de tais casos tinha até 13 anos. O estudo indica ainda que as crianças e adolescentes negros são as principais vítimas da maior parte dos estupros, representando 60% do total.
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No primeiro semestre de 2023, foram registrados 34 mil casos de estupro, representando um aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano anterior. Estima-se que o número real de casos de estupro seja muito maior, alcançando aproximadamente 822 mil por ano, devido à subnotificação.
O aborto legal no Brasil é permitido hoje em três circunstâncias, independentemente do avanço da gestação: em casos de estupro, quando há risco à vida da gestante e em casos de anencefalia do feto. No entanto, a implementação dessas leis enfrenta várias dificuldades práticas e burocráticas. Por exemplo, a Portaria 2.561/2020 do Ministério da Saúde exige a notificação dos estupros às autoridades policiais e a preservação de material para fins periciais, além de exigir que a vítima deve ser informada sobre a possibilidade de visualizar o feto por meio de ultrassonografia antes de decidir pelo aborto, o que pode ser uma forma de revitimização.
Ainda, em maio de 2024 o Supremo Tribunal Federal concedeu decisão liminar para suspensão de resolução recente do Conselho Federal de Medicina (CFM), que buscava proibir a utilização de uma técnica clínica para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro. Essas e outras dificuldades muitas vezes levam as vítimas a buscarem alternativas clandestinas, aumentando os riscos para sua saúde e segurança.
A equiparação da pena de aborto após 22 semanas de gestação à de homicídio, proposta pelo Projeto de Lei 1904/2024, não apenas afeta diretamente a saúde e os direitos das mulheres, mas também pode intensificar a violência policial contra jovens negras. Este artigo utiliza estudos e publicações do Núcleo de Justiça Racial e Direito (FGV Direito SP) para analisar como a criminalização do aborto exacerba questões de segurança pública e violência racial, sobretudo considerando as maiores complexidades e vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres jovens, especialmente aquelas que são negras. Em síntese, argumenta-se que o Projeto de Lei em discussão, ao invés de proteger, acabará expondo tais jovens a maiores riscos e violações de seus direitos humanos.
Consequências da criminalização do aborto
Considerando que a maior parte das vítimas dos estupros no Brasil possuem menos de 13 anos e, em sua maioria, são vítimas de abuso sexual sofrido, muitas vezes, em casa, é preciso levar em consideração a demora que inevitavelmente existe para que as meninas descubram a gestação. A limitação da possibilidade de aborto até a 22ª semana de gestação, nesse sentido, desviará o foco do problema da proteção da vida dessas vítimas, e aumentará a recorrência de abortos clandestinos.
As mulheres que recorrem a abortos clandestinos frequentemente enfrentam exploração e violência, o que aumenta a carga sobre a segurança pública para proteger essas mulheres. A criminalização do aborto cria um mercado clandestino perigoso e não regulamentado, onde as mulheres, especialmente jovens negras, são exploradas financeira e fisicamente. A criminalização do aborto está diretamente ligada à violência institucional e à exploração de mulheres, especialmente de minorias e grupos vulneráveis.
A criminalização do aborto acima de 22 semanas pode aumentar a desconfiança nas autoridades policiais, especialmente entre jovens negras e outras comunidades marginalizadas.
Esta desconfiança dificulta a cooperação necessária para outras investigações criminais e reforça a percepção de que a polícia é uma ferramenta de repressão em vez de proteção. A percepção de que a polícia não protege adequadamente as comunidades marginalizadas é exacerbada pela aplicação agressiva de leis que criminalizam o comportamento de mulheres negras.
A criminalização do aborto no Brasil não só exacerba problemas preexistentes na segurança pública, como também cria novos desafios, as pesquisas do Núcleo e Justiça Racial e Direito sobre segurança pública da população negra brasileira e a letalidade de jovens negros nos trazem a necessidade de repensar o funcionamento do sistema de justiça e a segurança pública no país.
* Pesquisadoras do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Coordenado pelo professor Thiago de Souza Amparo, o grupo promove pesquisas e debates sobre o impacto do direito na questão racial.