“Quando as pessoas falam do desmatamento na Amazônia, normalmente elas estão pensando no impacto do clima a nível global, mas, dificilmente, elas vão olhar para as pessoas que estão naquele lugar e o impacto sobre a vida delas”. A fala é de Odenilze Ramos, ribeirinha de 25 anos criada na comunidade do Carão (AM), a 70 km de Manaus.
Ainda segundo a jovem ativista socioambiental nascida dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, as discussões sobre a derrubada da floresta ficam muito centradas sobre o tanto de emissão gerada e o quanto isso contribui para a crise climática, mas pouco se olha para a exploração que acontece nesse contexto.
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“Muitas vezes, tanto madeireira quanto o garimpo exploram a população local. Também não se olha para os efeitos disso que já estão acontecendo, que é a injustiça climática”. Ela conta que em 2021 houve a maior cheia de todos os tempos no Rio Negro, quando foi registrado o maior nível já medido em 119 anos.
“Este ano (2022), a gente quase bateu o recorde de novo e a população sofre com isso, porque tem regiões da Amazônia que alagam tudo. Então a população perde toda a plantação, muitas vezes a casa e tem que sair dali. Muitas vezes, essas pessoas vão para a cidade e acabam sendo marginalizadas. Problemas acontecem e esse impacto na vida das pessoas que estão aqui não é olhado”, explica a ribeirinha.
Atualmente integrante do Global Shapers Hub Manaus, rede de jovens líderes focados em impactos positivos à sociedade, além de líder climática pelo Climate Reality Leaders e cocriadora do movimento Somos Filhos da Floresta, Odenilze luta pela preservação da floresta amazônica desde os seus 14 anos de idade.
“A gente não luta pela Amazônia, a gente não tem ela como uma causa. Ela é a nossa casa e a gente vive a Amazônia todo dia”, destaca. Além disso, ela pontua como há um desconhecimento muito grande sobre a Amazônia, como se ela fosse homogênea, única e pequena. Entretanto, a Amazônia engloba nove estados brasileiros e nove países.
“A Amazônia é gigante, é um mundo. Dentro da Amazônia tem um milhão de Amazônias, então é impossível se falar desse lugar como se fosse uma coisa única. As pessoas que estão aqui não são só uma população. Tem quilombola, indígena, ribeirinho, tem as cidades. Há cidades gigantes dentro da Amazônia, como Manaus, Belém, Santarém”, explica.
“Se você não olhar para a população que está dentro daquele lugar, como é que você consegue fazer a transformação acontecer de verdade? Como é que você vai falar das mudanças climáticas que estão acontecendo lá fora se você não está olhando a injustiça climática que está acontecendo aqui dentro?”, também indaga Odenilze Ramos.
Identidade ribeirinha
A ativista socioambiental é uma das autoras do minidocumentário em realidade virtual “Cipó de Jabuti”, lançado em 2019 e que narra o cotidiano das comunidades ribeirinhas da RDS do Rio Negro.
Ribeirinho | Crédito: Pedro Borges/ Alma Preta Jornalismo
A conversa com a liderança socioambiental aconteceu durante a imersão da Creators Academy, encontro em julho deste ano que reuniu cerca de 50 influenciadores por 5 dias na Amazônia. Durante a imersão, Odenilze Ramos também falou sobre a importância da educação ao longo de sua vida.
Na ocasião, ela contou que, atualmente, em suas atividades, têm três principais focos de atenção. O primeiro é a questão da identidade do povo ribeirinho, que é uma população muito invisibilizada.
“Há muito desconhecimento sobre essa cultura ainda, porque a nossa identidade é baseada na negação. Então a gente não é indígena, não é quilombola, não é branco, porque a gente é branco demais pra ser preto, preto demais pra ser branco. E aí você cresce com esse limbo de identidade, mas você sabe onde você mora e sabe que existe uma comunidade ribeirinha ali”, ressalta.
De acordo com Odenilze, é recente esse resgate do povo ribeirinho. A população só passou a ser reconhecida por Decreto Federal (6.040) em 2007, onde o governo reconheceu formalmente pela primeira vez a existência das populações tradicionais.
“Essa minha questão de identidade tem sido muito forte, porque eu espero muito que daqui a dez, vinte anos os jovens não tenham que passar pelas coisas que eu passei no início. Essa passa a ser a minha principal luta a partir desse momento que eu começo a entender que as pessoas conhecem sobre o bioma amazônico, mas elas não têm conhecimento sobre quem está ali dentro”, explica.
O segundo foco de atenção da ribeirinha é a educação. “Porque foi o que me deu a possibilidade de ter essa escolha de fazer diferente. As meninas tinham a cultura de casar com quinze, dezesseis anos no máximo e já constituir família. Como eu comecei a estudar e a participar de muito projeto social, eu tive essa possibilidade de escolha e de entender que não era aquilo que eu queria para mim, que eu queria estudar, poder voltar para cá e trazer conhecimento para comunidade”.
Os anos de ensino fundamental e médio foram realizados na comunidade de Tumbira (AM), que fica a uma distância de até 20 minutos da comunidade onde a ribeirinha nasceu e viveu até o momento em que foi fazer faculdade de Gestão Pública em Manaus. Entretanto, como noticiado em matéria anterior da Alma Preta Jornalismo, a realidade escolar da região nem sempre foi a mesma.
Localizada às margens do Rio Negro, a 64 km de Manaus, Tumbira só foi começar a ter o ensino médio em 2010. Antes disso, Odenilze relata que as pessoas acabavam tendo que sair muito cedo da comunidade para conseguir concluir os estudos, enfrentando dificuldade para se manter em Manaus, o que nem sempre era possível. Ela própria começou a estudar com dez anos de idade, porque seus pais tinham medo dela precisar sair da comunidade muito nova.
Tumbira fica a 64 km de Manaus | Crédito: Pedro Borges/ Alma Preta Jornalismo
“Sem educação a gente não consegue transformar a realidade e isso fica muito claro em Tumbira, onde a comunidade inteira se transformou depois que a gente teve a escola que foi uma luta comunitária para se conseguir e para que as pessoas não precisassem sair daqui pra estudar”, explica.
Geração de renda e bioeconomia na RDS do Rio Negro
Além da identidade ribeirinha e da educação, Odenilze Ramos destaca também que seu terceiro foco de atenção é a geração de renda, porque é impossível manter a floresta em pé, se não há geração de renda para as populações tradicionais.
“Não que as populações tradicionais sejam as maiores causadoras de desmatamento, mas se você chega numa comunidade e ela não consegue desenvolver nenhum tipo de renda ali local e então chega de repente o garimpo e oferece essa renda, a comunidade vai acabar indo para aquele caminho”, explica.
“Eu tenho batido muito nessa tecla de usar o turismo como uma ferramenta de transformação e a própria bioeconomia como um todo, porque é um potencial gigante que a Amazônia tem, mas que ainda é pouco falado, é pouco conhecido ou então é um discurso muito elitizado”, complementa.
Segundo a ativista socioambiental, a bioeconomia é um conceito que ainda está em formação, mas significa usar o recurso natural de forma verdadeiramente sustentável, produzindo desde cosméticos até atividades como o próprio turismo que não seja exploratório sobre a população e a natureza.
“Ainda é um conceito muito novo para as pessoas e muito acadêmico, mas a população local já faz a bioeconomia desde sempre. Agora a gente tem um termo para isso, ainda pouco conhecido, mas eu acredito que é um dos grandes potenciais para a Amazônia no sentido econômico”, ressalta a ribeirinha.
Além disso, Odenilze Ramos conta que faz parte de suas estratégias de atuação socioambiental o diálogo para trabalhar por mudanças e transformações no contexto de luta pela preservação da Amazônia e de sua população, considerando os riscos que existem no trabalho de ativismo ambiental no país.
“Você tem que escolher o caminho que você quer seguir, porque se você seguir o do embate, infelizmente, a gente vai terminar que nem Dorothy, Chico Mendes ou o Dom e o Bruno, porque infelizmente é isso que acontece. Então hoje o que eu tento fazer é primeiro conscientizar as empresas que querem ser conscientizadas, em como elas conseguem contribuir para a população tradicional”, comenta a ativista socioambiental.
“Tem sido muito também um trabalho de educar a cidade a entender o papel dela em tudo isso. A maioria das populações, tanto indígenas quanto ribeirinhos que vão para a cidade, acabam sendo marginalizadas e eu tenho olhado para essa caminho de conversa e de tentar abrir novas rodas de conversa em Manaus, de estar presente nos lugares, porque eu acho que só assim a gente começa a ser visto, porque as populações amazônidas não são vistas, são ignoradas e se a gente não estiver presente, vamos continuar sendo ignorados”, finaliza.
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