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Ciclo de pobreza expõe crianças negras a ‘estresse tóxico’ na primeira infância

Levantamento aponta que crianças pequenas em situação de extrema pobreza estão mais expostas a fatores adversos que impactam no seu desenvolvimento
Imagem mostra três crianças negras sentadas no chão e em um colchão rasgado.

Foto: Tiago Queiroz

28 de agosto de 2024

O pai de três filhos, Jhonathan dos Santos, de 30 anos, morador no Conjunto Denisson Menezes, no bairro Cidade Universitária, parte alta de Maceió (AL), enfrenta a dura realidade da desigualdade social.

Com o ensino médio completo e alguns cursos, ele no momento está desempregado e luta para sustentar a esposa, Janaina dos Santos, de 35 anos, e os três filhos: Mayck John, 11, Antony Joaquim, 6, e a pequena Jhully Emanuelly, de apenas 2.

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O working paper “Impactos da desigualdade na primeira infância”, do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), ajuda a ilustrar os efeitos da extrema pobreza vivenciado pela família de Jonathan e nas crianças na primeira infância. Os impactos incluem estresse familiar, abuso ou negligência dos cuidadores, insegurança alimentar, a exposição da violência e a falta de estimulação para brincar, conversar e dar afeto. 

Segundo o estudo, os pequenos em situação de extrema pobreza estão mais expostos a fatores adversos que impactam no seu desenvolvimento. De acordo com dados coletados em 2021, 11% das crianças de zero a seis anos (2,3 milhões) ainda vivem em domicílios sem renda suficiente para suprir as necessidades de calorias diárias, o que representa um percentual aproximado dos 13,5%.

Os dados também mostram que uma em cada três moradias com crianças pequenas no país enfrenta situação de insegurança alimentar. As crianças pretas e pardas são as mais afetadas pela insegurança alimentar, sendo 58% preta, 51,2% parda e 40% branca. 

Os números dialogam com a realidade de Jhonathan. “Está muito difícil para a gente poder sustentar os nossos filhos”, desabafa. A falta de emprego e a renda insuficiente impedem que a família dele tenha uma vida digna e acesso ao bem-estar necessário às crianças. A ausência de apoio do estado agrava ainda mais a situação, os forçando a buscar alternativas para cuidar dos filhos enquanto trabalham.

“Às vezes a gente tem que deixar com outra pessoa, e a criança vai começando a pegar a criação de outro”, lamenta, preocupado com a influência de terceiros na criação dos filhos devido à falta de opções de cuidado infantil. 

Outro fator preocupante nos domicílios brasileiros é a insegurança alimentar. Ainda segundo dados do working paper do NCPI, o problema se trata da proporção de domicílios brasileiros vivendo em insegurança alimentar. O número de famílias que não sabem se terão acesso à comida em um futuro próximo mais do que dobrou nos últimos nove anos. Em 2021/2022 esse percentual era de 58,9%; em 2020, de 52,2%; em 2015, 36,7%; e em 2013, 22,9%. 

Insegurança alimentar ainda é uma realidade nos lares brasileiros. (iStock)

Desigualdade afeta habilidades cognitivas na primeira infância

O professor do Insper Naércio Menezes, diretor do Centro de Pesquisa Aplicado à Primeira Infância (CEPAP) e coordenador do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (NPCI), explica que os resultados dos impactos da desigualdade na primeira infância consistem em uma sociedade mais desigual.

“Como o principal período de formação das habilidades cognitivas e socioemocionais é na primeira infância, se nessa fase a desigualdade já é grande, essa desigualdade persistirá ao longo da vida. Começa a continuar na escola, na diferença de aprendizado, chega no mercado de trabalho e assim por diante. E aí você não tem mais igualdade de oportunidades”, descreve o professor. 

Ainda segundo o especialista, essa desigualdade irá perpetuar o problema da pobreza intergeracional. “Você terá desigualdade na geração quando ela é bem pequena, essa desigualdade vai persistir, e aqueles que são mais vulneráveis, se eles não se desenvolverem plenamente na primeira infância, eles vão ter dificuldade no aprendizado e dificuldade depois para entrar no mercado de trabalho”.

Em consequência, segundo Menezes, essas pessoas irão ganhar menos no mercado de trabalho e “vão se tornar pobres, assim como seus pais eram. Por isso, se a gente quiser mudar as coisas, tem que ser na primeira”.

O professor ainda destaca que a falta de alimentação adequada e  de oportunidades na primeira infância podem ter riscos associados, como um ambiente propício à violência doméstica.

“Quando o ambiente em casa não é muito estimulante para a criança, por exemplo, se falta espaço para ela poder ter um ambiente tranquilo para poder estudar ou para poder ler um livro, tudo isso pode causar problemas de desenvolvimento infantil e isso tem de ocorrer mais frequentemente nas famílias mais vulneráveis, obviamente”, pontua. 

Desigualdades afeta habilidades cognitivas na primeira infância. (Reprodução)

Os impactos do estresse tóxico 

O estresse tóxico consiste na exposição de uma criança a situações adversas de maneira intensa e prolongada, sem a possibilidade de receber apoio e o cuidado adequado para lidar com as dificuldades. Especialistas exemplificam a condição como o estado de alerta constante do corpo e da mente, sem ter a chance de se recuperar ou relaxar.

Menezes destaca que o estresse afeta o desenvolvimento cerebral na medida em que os estudos mais recentes mostram que o desenvolvimento cerebral depende não só de fatores genéticos, mas de sua interação com o meio ambiente. 

“Quando uma criança enfrenta estresse tóxico, um problema grave e persistente no ambiente familiar, e isso acontece de forma contínua e intensa, pode afetar o desenvolvimento cerebral. Há estudos que comprovam isso, como o estudo na Romênia que mostrou que crianças, que foram criadas em condições muito ruins em orfanatos por muito tempo, tiveram seu desenvolvimento cerebral alterado”, exemplifica o especialista.  

A ausência de um ambiente estimulante nos primeiros anos de vida pode gerar consequências irreversíveis para o desenvolvimento infantil, alerta o especialista Naércio Menezes.

 “A falta de estímulos pode causar problemas no desenvolvimento da criança, afetando habilidades cognitivas, socioemocionais e motoras, com implicações para o aprendizado e para a vida toda”, destaca.

Para garantir que todas as crianças tenham a oportunidade de se desenvolver plenamente, Menezes ressalta a necessidade de políticas públicas multissetoriais. “Não basta uma coisa só”, afirma o especialista. 

“É preciso ter creches de qualidade, atendimento básico de saúde, programas de visitação domiciliar, políticas sociais de transferência de renda, infraestrutura adequada e moradias dignas.”

A complexidade da implementação de políticas integradas que envolvem diferentes ministérios e secretarias é um dos grandes desafios na área da primeira infância. “As políticas têm que ser multissetoriais e combinadas de maneira ótima para dar o maior retorno”, defende Menezes.

O papel da sociedade e das organizações

A sociedade e as organizações do terceiro setor têm um papel fundamental na promoção do desenvolvimento infantil. “É preciso alertar todas as famílias, especialmente as mais vulneráveis, sobre a importância da primeira infância”, destaca Menezes.

Além disso, as organizações podem atuar junto aos governos, auxiliando na implementação de planos multissetoriais para a primeira infância. “É preciso garantir que cada criança se desenvolva de maneira adequada”, acrescenta o especialista.

Já o presidente da Sociedade Alagoana de Pediatria, Marcos Gonçalves, afirma que as políticas públicas para a primeira infância são essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade saudável. Ele destacou que, desde 2016, os governos municipais, estaduais e federal estão aprendendo a lidar com a questão e que as políticas públicas estão cada vez melhores.

“A gente tá vendo que é o melhor tipo de investimento que existe. Você quer investir dinheiro em alguma coisa? Invista nas crianças, porque são crianças agora, que vão trazer uma população mais saudável futuramente”, diz Gonçalves.

Ele ressaltou que é essencial que sejam feitas políticas públicas para a faixa etária do nascimento até seis anos de idade, para que as crianças tenham um desenvolvimento saudável e, consequentemente, uma sociedade saudável no futuro.

“É uma questão de investimento. Se você investe na primeira infância, você vai ter uma população mais saudável, mais produtiva e com menos problemas sociais”, destaca. 

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

  • Jean Albuquerque

    Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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