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Crianças negras enfrentam riscos que agravam efeitos da exposição às telas

Especialista alerta que exposição prolongada às telas pode atrasar desenvolvimento da linguagem, prejudicar habilidades motoras e causar problemas de sono na primeira infância
Imagem mostra um menino negro usando um notebook.

Foto: Reprodução

21 de setembro de 2024

“Eu procuro evitar que ela esteja nas telas, a estimulando a ter outros tipos de entretenimento. Por isso, a incentivo a pintar, brincar de bolinhas de sabão, brincar com suas bonecas e até a participar das tarefas domésticas”, relata a jornalista Brunna Moraes, de 27 anos, mãe solo de Naila, de quatro anos.

Ela, que é natural de Maceió (AL), e hoje mora em Curitiba (PR), afirma ter um cuidado maior em relação à exposição às telas. Durante a semana, a filha não passa o dia em frente ao celular porque fica a maior parte do tempo na creche. Durante a noite, a mãe conta que costuma não permitir a permanência com o aparelho para não atrapalhar o sono da pequena.

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“O fim de semana é o período em que ela mais fica em frente às telas, geralmente nos momentos em que preciso cozinhar, lavar roupa e cuidar da casa. Nessas ocasiões, procuro não entregar o celular, que lhe daria mais controle sobre o que vê e com o que interage, e permito que assista à tela do computador ou da TV”, detalha. 

Para Brunna, o maior desafio consiste no estabelecimento do momento de retirada do celular. A mãe argumenta que o principal impacto negativo se trata do comprometimento do sono, “inclusive, por isso, que não permito mais telas durante a noite”. 

A aflição da mãe também é motivo de crescente preocupação entre especialistas e instituições de saúde. Diversas entidades têm emitido recomendações para um uso moderado, visando proteger o desenvolvimento infantil. 

“A Naila passa mais tempo em frente às telas do que eu gostaria, mas sozinha não consigo dar conta de todas as atividades que ela precisa. O celular se tornou um grande aliado, mas sei que não é a solução ideal”, acrescenta a jornalista.

Assim como Brunna, a sobrecarga de tarefas e a falta de tempo livre acabam impulsionando muitas mães a buscar soluções práticas, mesmo que estas não sejam as mais indicadas para o desenvolvimento infantil.

No entanto, ela também reconhece a importância de adaptar o mundo digital às necessidades das crianças. “Visto que é inevitável o contato com as telas, é preciso torná-lo seguro e educativo. Aplicativos como o YouTube Kids são um bom exemplo de como é possível oferecer conteúdo adequado para o público infantil.”

A jornalista Brunna Moraes e a filha, Naila.
A jornalista Brunna Moraes e a filha, Naila. (Acervo pessoal)

Exposição de crianças a dispositivos preocupa Sociedade Brasileira de Pediatria

A crescente exposição de crianças pequenas a dispositivos eletrônicos tem levantado preocupações entre profissionais da saúde e educadores. A Sociedade Brasileira de Pediatria destaca a importância de evitar o contato de crianças menores de dois anos com telas e sugere que, entre dois e cinco anos, o tempo máximo diário seja de uma hora.

Um relatório atualizado da Sociedade Brasileira de Pediatria, intitulado “Menos Telas, Mais Saúde”, publicado em agosto de 2024, destaca os riscos que o uso excessivo de telas pode trazer para o desenvolvimento físico, mental e emocional das crianças na primeira infância.

De acordo com o documento, bebês e crianças menores de dois anos não devem ser expostos a telas, enquanto para crianças de até cinco anos, o tempo deve ser limitado a uma hora por dia, sempre sob supervisão de adultos. 

O relatório adverte que a exposição precoce às telas pode atrasar o desenvolvimento da fala e da linguagem, além de prejudicar a interação social, essencial nos primeiros anos de vida.

Além dos efeitos no desenvolvimento cognitivo, o uso excessivo de telas está associado a distúrbios de sono e transtornos comportamentais, como irritabilidade e agressividade. 

A luz azul emitida por smartphones e tablets também afeta a produção de melatonina, hormônio responsável pela regulação do sono, agravando problemas de insônia e cansaço diurno nas crianças.

Ainda segundo o documento, especialistas também alertam para a “distração passiva”, prática comum entre pais que utilizam dispositivos eletrônicos para manter as crianças ocupadas. Segundo o documento, essa atitude impede que as crianças participem de brincadeiras ativas, fundamentais para o desenvolvimento saudável do cérebro.

A Sociedade Brasileira de Pediatria ressalta a importância de atividades ao ar livre, interação familiar e o estabelecimento de rotinas saudáveis para contrabalançar os efeitos nocivos das telas. 

O documento faz um apelo para que os pais se envolvam mais ativamente na mediação do tempo de uso de dispositivos eletrônicos, evitando o isolamento e incentivando o diálogo e o afeto no convívio diário.

Essas recomendações estão em consonância com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), que já reconheceu o uso problemático de tecnologias e videogames como uma questão de saúde pública.

Crianças negras na primeira infância mais vulneráveis às telas 

O médico psiquiatra Pedro Pan, pesquisador do Instituto Ame sua Mente, defende que a exposição prolongada às telas pode atrasar o desenvolvimento da linguagem, prejudicar as habilidades motoras e causar problemas de sono; assim como já ocorre com Naila, filha de Brunna.

Além disso, o especialista ressalta que crianças negras, em particular, podem ser mais vulneráveis a esses impactos, devido a fatores como menor acesso a espaços seguros para brincar e maior exposição a situações de estresse.

“Crianças negras podem enfrentar maior risco de estresse e traumas, o que, combinado com a possível falta de acesso a recursos educativos de qualidade, pode agravar os efeitos negativos do tempo de tela excessivo”, explica Pan.

O psiquiatra também destaca a importância de considerar as particularidades de cada família ao estabelecer limites para o uso de telas, uma vez que fatores como a disponibilidade dos pais para cuidar das crianças podem influenciar o tempo que elas passam em frente aos dispositivos.

“Temos que cuidar para não julgar também, porque cada família pode ter uma necessidade específica, sem conseguir outras alternativas, mesmo sabendo que o melhor seria utilizar menos telas com crianças”, afirma o psiquiatra.

Promoção do uso saudável das telas 

Para promover um uso mais saudável das telas, Pan sugere que pais, educadores e profissionais de saúde adotem algumas estratégias, a exemplo do estímulo a brincadeiras ao ar livre e outras atividades que promovam o desenvolvimento físico e social.

Para ele, também é necessário orientar os pais, no sentido de oferecer informações sobre como mediar o tempo de tela e selecionar conteúdos adequados. E ainda destaca a importância de desenvolver plataformas educacionais que ofereçam conteúdo relevante para crianças negras.

“Também é essencial haver um esforço para melhorar o conhecimento sobre essa questão do digital para pais e cuidadores, capacitando-os a fazer escolhas informadas sobre o uso de tecnologias por seus filhos. Por exemplo, é indicado estabelecer limites e ter ciência de quando e com que frequência eles têm sido extrapolados”, pontua o psiquiatra. 

O especialista destaca ainda a importância de refletir sobre o conteúdo consumido por meio dessas telas, já que ele pode repetir aspectos do racismo da sociedade, como personagens predominantemente brancos, modelos de família nos jogos, vídeos e filmes que repliquem esse tipo de viés.

“A tecnologia pode sim ser uma ferramenta poderosa para estimular o aprendizado e o desenvolvimento infantil em comunidades negras, se utilizada de forma consciente e direcionada, sempre com a supervisão completa dos cuidadores”.

Imagem mostra duas crianças negras brincando.
(Freepik)

Governo Federal elabora guia com orientações sobre uso de telas

Questionado pela reportagem da Alma Preta sobre as políticas públicas necessárias para garantir o acesso equitativo à tecnologia e promoção do uso saudável das telas para todas as crianças, o Governo Federal afirmou que trabalha em um guia com orientações sobre o tema. 

“Para garantir o acesso equitativo à tecnologia, vários esforços vêm sendo empreendidos pelo governo federal por meio dos Ministérios da Educação, das Comunicações e pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, entre outros órgãos de governo”, afirmou a Secretaria de Comunicação.

Segundo o governo, o Guia Orientativo para Uso de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes contará com conteúdo voltado à proteção e promoção dos direitos fundamentais desse grupo, prezando por seu acesso responsável, amplo, seguro e participativo no ambiente digital. 

“O Guia pretende ser um documento oficial com recomendações e pronunciamento do governo federal sobre o tema. Será baseado em evidências científicas e melhores práticas internacionais e deve se desdobrar em ações de comunicação e processos formativos para públicos específicos. Ele terá sido fruto de um grupo de trabalho que reuniu sete Ministérios do governo federal e outras vinte representações, entre órgãos do sistema de justiça, organizações da sociedade civil e pessoas com notável atuação no tema”, acrescenta. 

Sobre o combate ao racismo, afirma ainda que o texto do Guia deve trazer reflexões sobre o tema quanto à prática de cyberbullying, aos discursos de ódio e à existência do racismo algorítmico, entre outros temas relacionados às desigualdades e discriminações no ambiente digital.   

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

  • Jean Albuquerque

    Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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