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“Eu ainda sinto seu ori”: filha, Bethânia carrega legado de Beatriz Nascimento

Bailarina, com carreira consagrada nos EUA e mundo, Bethânia Nascimento prepara o lançamento de fundação com nome da mãe e intelectual Beatriz Nascimento em Nova York

Beatriz Nascimento tem o legado defendido pela filha

Foto: Beatriz Nascimento tem o legado defendido pela filha

13 de julho de 2022

“Nos aquilombar para fazer da nossa nação um lugar melhor, um lugar que nos pertence, um Brasil que nos pertence”, esse é o maior legado de Beatriz Nascimento, segundo Bethânia Nascimento, bailarina e filha da intelectual e ativista do movimento negro.

Bethânia se sente à vontade para falar da mãe, que além de ter lhe parido, era a sua grande amiga. “Se me perguntassem na adolescência quem era a minha melhor amiga, eu responderia: minha mãe”. A proximidade e a conexão entre as duas é tamanha que ela sente a presença da mãe até os dias de hoje, 27 anos após o assassinato dela. Beatriz nasceu em 17 de julho de 1942, em Sergipe

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“Eu sei como minha mãe era, o que ela pensava. Eu ainda sinto o seu ori”. Ori é uma palavra de origem Iorubá que significa a cabeça da pessoa. No caso da intelectual, a palavra tem um sentido especial, por ser o nome do documentário dirigido por Raquel Gerber que conta sobre a luta negra e a noção de aquilombamento com a narração e percepção da vida de Beatriz Nascimento.

A partir dessas conexões afetivas com a mãe, Bethânia tem se organizado para lançar e fortificar a Fundação Beatriz Nascimento, que será situada em Nova York, nos EUA, e tem o objetivo de apresentar para o mundo o legado afro-brasileiro. O espaço, ainda sem endereço, será no Harlem, bairro com a presença de afro-americanos e latinos.

“Não tem um centro afrobrasileiro, onde mostre tudo o que é precioso no Brasil, nossa história, música, cinema, jornalismo, moda. Lá vai ter workshops, aulas, exposições”.

Bethânia mira nomes para a fundação homenagear, como Conceição Evaristo, Cassiano, Tim Maia, Abdias Nascimento, entre outros. A fundação acabou de ser aprovada pela receita federal norte-americana e tem um website, com descrições sobre as metas da iniciativa.

No site da fundação é possível ver fotos antigas e desenhos sobre a intelectual. Na página inicial também está escrito que a instituição está voltada para propagar arte e educação e a entidade está baseada no legado de Beatriz Nascimento e tem a missão de divulgar a “cultura afro-brasileira por todo o mundo”.

O resgate da memória de Beatriz Nascimento, contudo, não é de hoje. Em forma coletiva e em quilombo, como desejaria a intelectual, Bethânia contou com a parceria de muitas pessoas para manter vivo o legado da mãe. Uma delas, que merece destaque especial, é Alex Ratts, autor da obra “Eu sou Atlântica”, apresentada ao público em 2007 como a primeira publicação após a sua morte. “A gente se tornou brother and sister, somos irmãos cósmicos. Ele diz sentir uma força vinda de Beatriz”.

Depois do lançamento, a conexão entre os dois persistiu e em 2012 decidiram por organizar as poesias de Beatriz para publicar os escritos da intelectual. O resultado foi a publicação da obra “Todas (as) distâncias”, com a curadoria da dupla.

Bethânia também afirma que para este ano uma das novidades deve ser o lançamento de um livro em inglês sobre a intelectual. Ela conta com o apoio da professora Christen Smith, da Universidade do Texas, e Archie Davis, da Universidade de Kings, em Londres.

“Eu espero que a próxima tradução seja de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, porque nós no Brasil, a gente fala de Audre Lorde, bell hooks, e aqui ninguém sabe quem são nossas intelectuais e referências e alguns dos nossos falaram coisas antes deles falarem”.

Bethânia, a bailarina atlântica

Filha de Beatriz Nascimento e Djosa Freitas Gomes, cabo-verdiano, Bethânia Nascimento cresceu no Rio de Janeiro, no bairro do Botafogo. A proximidade e as comparações com a mãe fizeram a criança e adolescente se apaixonar pela dança, uma forma de se diferenciar da progenitora.

“Mamãe tocava violão e cantava, tanto que em Ori há um momento que ela canta. Ela só não fazia balé, por isso eu escolhi, porque aí não era comparada com ela na família”.

Bethânia tinha o sonho de se tornar a primeira bailarina negra do Brasil, se possível no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde começou cedo.

“Eu tive duas escolas no Rio de Janeiro, uma foi a Johnny Franklin, uma academia de balé onde comecei, e depois foi quando eu entrei para a escola do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A minha passagem pelo corpo de baile do Theatro Municipal foi breve por motivos de racismo”.

Ainda adolescente, com cerca de 16 anos, a bailarina diz ter enfrentado períodos difíceis no balé, numa etapa da vida de formação da identidade. “Eu acho que foi um dos momentos mais fortes e explícitos de racismo na vida”.

“Eles estavam montando o Lago dos Cisnes e eu comecei na linha de frente do corpo de baile, porque eu não sou alta. Do nada eu estava atrás com as mulheres mais altas e de repente eu não estava mais lá dançando. Eu era uma criança e lembro de não poder entrar no corpo de baile no dia da estreia”.

Nas aulas de dança na Escola do Theatro Municipal, onde estudou, foi vista por Arthur Mitchel, diretor e fundador da Companhia de Teatro de Dança do Harlem. Ele a convidou para compor o grupo, desejo reforçado pela mãe. “Você tem que ir para Nova York. É lá que uma mulher negra deveria se desenvolver e eu queria isso para você”, disse Beatriz.

Bethânia aceitou o desafio e aos 17 anos, em 1991, foi para Nova York, sozinha e sem falar inglês, língua que só aprendeu depois de ficar três meses sem se comunicar com brasileiros e muito assistir MTV. Essa história é contada no livro “Betha, a bailarina pretinha”, do selo Carneirinho, linha infantil da editora criada pela filósofa Djamila Ribeiro em homenagem à fundadora do Geledés, Sueli Carneiro.

Na Companhia de Teatro de Dança do Harlem, ela teve a sua primeira apresentação poucos anos depois de chegar aos EUA. E não foi qualquer espetáculo. Ela se emociona até hoje ao lembrar. Naquela época, a companhia fez uma viagem à África do Sul, para se apresentar para o recém liberto Nelson Mandela.

“Falaram para a gente ficar no backstage depois do show e do nada começou a entrar um monte de seguranças. E ele veio, sorrindo, dançando, era uma pessoa de muita luz. Ele disse que amou o balé, porque lembrou da época dele livre, quando era jovem”. 

Em 2001, Bethânia atingiu o ponto máximo na carreira de uma dançarina de balé, ao se tornar primeira bailarina da Companhia de Teatro de Dança do Harlem. Para chegar a essa posição, a dançarina inicia a trajetória como aprendiz, depois se torna corpo de baile, então solista e por último, primeira bailarina. Ela se tornou a primeira bailarina afro-brasileira a ocupar essa posição em uma companhia de balé do mundo.

Com o novo posto, ela ganhou um papel, chamado o “Pássaro de Fogo”. Com essa atuação, se apresentou pelo mundo, em mais de 26 países, como Austrália, Nova Zelândia, China, entre outros.

Família

A conexão forte com a mãe, incentivadora da vida profissional e companheira no aspecto pessoal, foi interrompida em 28 de janeiro de 1995, quando Beatriz do Nascimento foi assassinada. Ela foi baleada por Antônio Vianna, quem tinha uma relação com uma colega de Beatriz. A ativista aconselhava a amiga a se afastar de Antônio, homem com histórico de violência doméstica. Ele foi condenado a 17 anos de prisão, em abril de 1996.

O fato abalou muito Bethânia, o que acarretou em um período de mudanças no campo profissional. Ela saiu da Companhia de Teatro de Dança do Harlem e passou a buscar outros sonhos. Ela chegou a dançar na Companhia Complexions, com foco no estilo contemporâneo, pelo período de um ano, e depois por cerca de três meses foi dançarina da companhia do músico Prince, um dos ícones da música americana.

Os ciclos da vida permitiram à Bethania parir o filho em 9 de Maio de 2006, Arjan Nascimento, hoje com quinze anos. Ela cuidou do menino sozinha no Brasil, onde teve momentos de alegria e dificuldade.

“O Brasil foi bom para a minha maternidade e saúde mental, entrar em contato com o legado da minha mãe fisicamente, e também espiritualmente, porque eu sou candomblecista”. Ela, porém, enfrentou desafios no mercado profissional. “Os diretores de projetos sociais, a maioria pessoas brancas, se sentiam extremamente ameaçados quando viam meu currículo”.

No Rio de Janeiro, ela trabalhou em projetos sociais na comunidade do Chapéu Mangueira e no morro da Babilônia. Lá, teve uma grata surpresa, conhecer a então pequena e hoje bailarina, Ingrid Silva.

“Fui dar aula no projeto ‘Dançando para Não Dançar’ e lá eu vi a Ingrid Silva pela primeira vez. Depois de ver o talento dela, tive a ideia de fazer um DVD e mandar para o Arthur Mitchel para ver se ele poderia dar uma bolsa de estudos e ele falou que sim”.

As duas hoje tem uma relação de proximidade e o sucesso internacional de Ingrid Silva é motivo de orgulho para Bethânia. “Ver uma adolescente que não teria nenhuma chance por ser de tez escura, periférica e fazer aula num projeto social ser reconhecida é gratificante. Eu queria ter feito isso por muitas outras. Com ela, deu certo”.

Em 2015, voltou para o Harlem com o filho e três malas. Ela conseguiu emprego para se tornar professora da Companhia de Teatro de Dança do Harlem, onde hoje dá aulas para jovens, a maioria negros. Ela também se considera mentora de Ingrid Silva e está prestes a se jogar para mais um desafio atlântico, coordenar a fundação que leva o nome da mãe, Beatriz Nascimento.

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