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Crianças negras sofrem mais violência que compromete desenvolvimento na primeira infância

Dados analisados pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI) revelam que 63% das vítimas de violência de zero a seis anos são negras
Imagem mostra uma menina negra e pequena de costas em um pátio onde há outras crianças. Ela está com uma blusa preta com estampa de flores.

Foto: Douglas Lopes

14 de outubro de 2024

As crianças negras, especialmente na primeira infância, são as principais vítimas de violência no país. Desde os primeiros anos de vida, elas enfrentam violações de direitos que comprometem seu desenvolvimento e potencial humano.

 No primeiro semestre de 2022, foram registradas 122.833 violações contra crianças de zero a seis anos. No total, 63% das vítimas eram negras. Os dados são do estudo  “Prevenção de violência contra crianças”, do Núcleo Ciência pela Primeira Infância (NCPI), publicado em 2023, de autoria da professora e pesquisadora Maria Beatriz Martins Linhares. 

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Ainda segundo o documento, em relação às vítimas de morte violenta intencionais (MVI) no país em 2021, na faixa etária de zero a 11 anos, 63% eram crianças negras.

Para a pesquisadora, que atua no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e integra o Comitê Científico do NCPI, a violência contra crianças é um problema global complexo, que afeta bilhões de jovens e causa danos profundos e duradouros, que produz consequências emocionais, sociais e econômicas de longo prazo e alto custo para os governos.

A análise histórica dos dados do Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Brasil, de 2011 a 2017, revela uma tendência crescente de notificações de abuso infantil, aponta Maria Beatriz.

“No primeiro semestre de 2021, a violência contra crianças e adolescentes atingiu o número de 50.098 denúncias no Disque 100, sendo que 81% desse total ocorreram no ambiente familiar da vítima e referem ter sido praticada pela mãe de forma predominante e seguida pelo pai, padrasto ou madrasta e outros familiares do convívio da criança”, acrescenta.   

A realidade de violência contra as crianças requer a formação de cidadãos voltados para a convivência social e a cultura de paz. Esses são os objetivos da Semana Nacional de Prevenção da Violência na Primeira Infância, de 12 a 18 de outubro, instituída pela Lei nº 11.523/2007.

Quais são os tipos de violência enfrentadas pelas crianças?

Segundo Maria Beatriz Martins Linhares, existem diversos tipos de violência, a exemplo do dano físico, estresse tóxico associado ao racismo, mudanças de comportamento, violência sexual, física, psicológica e a negligência. 

Além disso, a pesquisadora detalha que a violência pode ocorrer de diferentes tipos e de forma individual ou combinada:

  • Violência sexualAção que constranja a criança ou o adolescente a praticar, ou presenciar conjunção carnal, ou qualquer outro ato libidinoso, realizado presencialmente ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro. O abuso sexual cometido no ambiente familiar é mais frequente do que o cometido por pessoas fora do domicílio.
  • Violência física – Ação intencional infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico. Está relacionada com a utilização de força física contra à pessoa, criança ou adolescente, por cuidadores, pessoas do convívio familiar ou terceiros visando causar dor, sofrimento, lesão ou destruição da vítima.
  • Violência psicológica – Ação ou situação recorrente em que a criança ou o adolescente são expostos, que pode comprometer seu desenvolvimento psicológico. Incluem comportamentos de discriminação, depreciação, desrespeito por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática.
  • Negligência – Omissão de cuidados básicos e de proteção à criança frente a agravos evitáveis e tem como consequência, portanto, o não atendimento de necessidades físicas e emocionais básicas. 

“As consequências podem ocorrer a curto, médio e longo prazo, muitas vezes ocorrendo o ciclo intergeracional da violência. Neste caso, os pais que sofreram violências na infância reproduzem a violência com seus filhos”, defende. 

Imagem mostra ursinho marrom com curativo.
Foto: Reprodução

Exposição à violência influencia comportamento e desempenho escolar 

Segundo a professora, a violência contra crianças consiste em um problema grave e persistente na sociedade, que representa uma ameaça significativa ao desenvolvimento humano. 

Para Linhares, pode ser entendida como um “evento de estresse tóxico no desenvolvimento”, desencadeando alterações fisiológicas e psicológicas duradouras nas crianças. 

De acordo com a especialista, crianças expostas a esses tipos de práticas tendem a apresentar problemas comportamentais, como agressividade, desobediência e dificuldades de aprendizagem.

Os impactos da violência na infância se estendem para além da primeira infância, podendo afetar o desenvolvimento e o comportamento das crianças ao longo de toda a vida. 

“A violência contra crianças pode ser entendida como um ‘evento de estresse tóxico no desenvolvimento’, desencadeando alterações fisiológicas e psicológicas duradouras nas crianças”, disse.

Como identificar os sinais de violência?

A pesquisadora ressalta a importância de observar determinados sinais no comportamento das crianças para identificar possíveis situações de violência intrafamiliar. “É importante observar machucados e adoecimentos frequentes e as mudanças no comportamento das crianças, como maior medo, retraimento ou, por outro lado, agitação e irritabilidade”, afirma. 

Ela destaca a necessidade de atenção às alterações nos padrões de sono e alimentação, que podem ser indicativos de sofrimento. Além disso, educadores, médicos e membros da família desempenham um papel fundamental na detecção desses sinais. 

Segundo a pesquisadora, os relatos e queixas das crianças não devem ser ignorados e precisam ser investigados para identificar possíveis casos de violência. Linhares também menciona a violência escolar, como o bullying, destacando a importância da atenção dos professores para comportamentos agressivos, tanto físicos quanto verbais, entre os alunos. 

Ela explica que é crucial observar a dinâmica entre a criança agressora, a vítima e os demais colegas que testemunharam a situação, de modo a planejar ações preventivas e de intervenção no ambiente escolar.

Políticas públicas e estratégias para criar ambientes seguros

No Brasil, o arcabouço legal de proteção às crianças vem se fortalecendo ao longo dos anos, mas ainda há muito a ser feito no enfrentamento da violência contra crianças. Para a professora, é fundamental que as políticas públicas sejam mais eficazes e focadas na prevenção. 

“Precisamos de políticas públicas que ofereçam respostas efetivas para o enfrentamento da violência contra as crianças. A prevenção é o melhor caminho”, afirma Linhares. Ela ressalta ainda a importância de se conhecer e sistematizar dados atualizados sobre o problema para as ações serem planejadas com metas e resultados bem definidos. 

De acordo com Linhares, essas políticas devem ser intersetoriais, envolvendo as áreas da saúde, educação, assistência social e jurídica. “Os gestores precisam trabalhar em parceria com coordenadores de serviços, profissionais técnicos e a comunidade para criar redes de proteção às crianças”, explica. 

Além disso, é essencial que sistemas de notificação de violência funcionem de forma integrada entre os diferentes setores públicos, e que o sistema jurídico mantenha seu compromisso com os direitos fundamentais das crianças.

Um exemplo prático de programa preventivo citado por Linhares é o ACT – Para Educar Crianças em Ambientes Seguros, desenvolvido pela Associação de Psicologia Americana e validado no Brasil. O programa, centrado na parentalidade, oferece encontros semanais com famílias para discutir temas como regulação emocional, disciplina positiva e prevenção da violência.

 “O ACT tem mostrado resultados positivos na melhoria das práticas parentais e na redução de problemas de comportamento em crianças de até seis anos”, destaca Linhares.

Ela também enfatiza que as estratégias de parentalidade positiva são essenciais para garantir ambientes seguros e saudáveis para as crianças. “A disciplina não-violenta, os cuidados responsivos e o fortalecimento dos vínculos afetivos formam a base de proteção às crianças”.

Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.

  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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