Em Amadora, município que compõe a região metropolitana de Lisboa, em Portugal, um imigrante negro cabo-verdiano foi assassinado a tiros pela polícia. Odair Moniz, de 43 anos, foi alvo de disparos de agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), corporação policial que atua em todo o país, no dia 21 de outubro deste ano.
Após a morte por violência policial, a vítima ainda teve sua honra e imagem violados. Como justificativa, a PSP alegou que Odair portava uma arma branca e tentava roubar um veículo. Dias depois, comprovou-se que o carro em questão era da própria vítima. A narrativa promovida pela polícia, e endossada por políticos extrema-direita, descrevia a vítima como um homem violento e perigoso, que precisou ser contido.
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O caso ganhou repercussão nacional e trouxe luz às condições de violência nas quais são submetidas os imigrantes na região, em especial, os ciganos, negros e africanos. O contexto já havia sido denunciado no relatório anual da Anistia Internacional em Defesa dos Direitos Humanos do último ano, que apontou ocorrências de torturas, utilização excessiva de força e má conduta policial.
Em entrevista à Alma Preta direto de Portugal, Flávio Almada, mestre em estudos Internacionais do Norte da África e Oriente Médio pelo Instituto Universitário de Lisboa, rapper e ativista, conta que a imagem divulgada de Odair não condiz com o homem que conheceu. Almada, que também é de Cabo Verde, narra um homem amável, conhecido por muitos e solidário.
“[Ele] era muito conhecido nas periferias, nos bairros, porque era uma pessoa muito sociável. Muito alegre e solidário, super disponível e amigo. Embora tenhamos quase a mesma idade, ele era muito mais amigo da minha mãe. Eu vi ele poucos dias antes de ser assassinado pela polícia”, explica.
O porta-voz do Movimento Vida Justa vive em terras portuguesas há duas décadas e mora no bairro de Zambujal, região periférica onde morava a vítima. O distrito, de acordo com Almada, tem um longo histórico de episódios de violência estatal como a que vitimou seu amigo.
“Infelizmente eu conheço de perto muitos casos e grande parte das pessoas que foram mortas a queima-roupa pela polícia nos últimos 20 anos, a maioria eu conhecia. Uma parte aconteceu na região onde eu vivo, e também por causa do trabalho que ligaram o movimento hip-hop e a militância, então acabei por conhecer essas pessoas”, diz o pesquisador.
Segundo Flavio Almada, o ataque à honra de vítimas da violência policial é algo enfrentado com frequência pela população negra em Portugal e no mundo. Para ele, a acusação de roubo é um modo de desumanização sistemática que atinge a comunidade negra e periférica
“Quando uma pessoa negra morre, sua imagem é assassinada antes da morte, né? E quando a bala, atinge o seu corpo e morre, configura-se a morte biológica. Automaticamente vem todo o discurso que vai fortalecer essa criminalização essa desumanização. Então isso não é um ato isolado, é um ato sistêmico”, completa.
Almada relatou outros casos de pessoas mortas, agredidas ou torturadas por policiais em Zambujal desde 2003, incluindo o próprio. Ao compartilhar suas experiências pessoais de violência com a PSP, o pesquisador precisou escolher um único acontecimento entre os tantos que já lhe ocorreu. O relato contou episódios de ameaça, ataque a tiros, sequestro, tortura psicológica e física.
Em todos as ocasiões narradas, houve uma disseminação de narrativas que criminalizam as vítimas. No entanto, para o ativista, a opressão direcionada a essas comunidades é uma construção diária que passa por diversas etapas até culminar nas ocorrências mais extremas.
“Eles gostam de dizer sobre paz perpétua, nós temos uma guerra perpétua contra nós. […] Ela configura-se, por exemplo, na forma como a escola está organizada, para que tenhamos determinados tipos de profissões. No currículo, o conteúdo, a forma como a mídia burguesa e racista criminaliza a população negra. Como a memória, em termos nacionais, é construída com bando de carrascos, que eles chamam de navegadores. E a resistência negra não aparece nada, então parece que os africanos não tiveram a história”, elucida Almada.
Citando o cientista social brasileiro Deivison Faustino, o especialista cabo-verdiano descreveu o fenômeno como “epidemização de papéis sociais”, mecanismo social que fortalece o controle e a exclusão de comunidades vulneráveis. “Mas no caso da população negra, a estrutura já está organizada para dar um lugar. E mesmo quando se rompe, teu corpo é devolvido para o não lugar”, diz o ativista.
Condições precárias de moradia
O relatório da Anistia Internacional ainda aponta que as pessoas de etnia cigana e afrodescendente são afetadas desproporcionalmente pela questões habitacionais no país, com múltiplas denúncias de desalojamentos forçados e habitações inadequadas.
À Alma Preta, o pesquisador Lucas Zanetti, doutor pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), explica que a população imigrante em Portugal é a que mais sofre com a questão habitacional.
Entre suas recentes pesquisas, Zanetti explora o movimento de imigração e as tendências anti-migratórias de movimentos políticos de extrema-direita na Europa e em cidades portuguesas, como Amadora, local onde morou durante sua pesquisa.
O pesquisador esclarece que as zonas centrais sofrem com aumento de preço dos aluguéis, ocasionando uma gentrificação da área. Os imigrantes afetados, no entanto, possuem perfil distinto, que difere daqueles que vêm do norte europeu. Com a gentrificação, iniciou-se o processo de formação de periferias, que passaram a ser ocupadas majoritariamente pelos negros e ciganos.
“Se você pegar o trem de Lisboa em destino à Amadora ou Sintra, que é uma cidade mais longe ainda, você não encontra pessoas brancas”, diz o pesquisador.
As condições habitacionais também variam de acordo com o perfil do imigrante, aponta Zanetti. A régua que mede as condições a serem vividas pela pessoa que imigra pode variar a partir do fenótipo que ela carrega. Segundo ele, algumas moradias em que se hospedam imigrantes indianos ou asiáticos, funcionam em turnos alternados, superlotados e sem a possibilidade de estadia fixa.
Flavio Almada recorda das condições climáticas de Portugal, considerado como uma das regiões mais frias da Europa. Junto a umidade nas moradias precárias, o pesquisador aponta que muitos casos de doenças respiratórias de Zambujal são negros, pobres e ciganos.
“Hoje em dia há uma expulsão da população negra da proximidade do centro da cidade. Por um processo de gentrificação que a cidade tornou praticamente uma cidade turistificada, uma cidade-hotel”, completa o especialista cabo-verdiano.
Protestos e extrema-direita
No último domingo (27), o Movimento Vida Justa, ao qual Flavio Almada faz parte, realizou um protesto por justiça a Odair e contra a violência da PSP. No mesmo dia, uma manifestação organizava pelo Chega!, partido político de direita criado em 2019, bradava políticas anti-imigratórias e elogios a atuação policial.
Em um vídeo divulgado pelo Vida Justa, apoiadores do Chega lamentavam a falta de armas para atingir os protestantes de Zambujal. Apesar mobilização dos políticos, Almada diz que o partido não possui tanta adesão e que a manifestação da direita não obteve o efeito esperado. “Eles que ficássemos escondidos, que não fossem no protesto. Queriam ocupar as ruas, mas a rua é nossa”.
“As declarações que os fascistas fizeram não nos surpreende na periferia, porque são coisas que já ouvimos dos agentes policiais. A nossa vantagem é que quase todo o país ficou sabendo do caso, já não dá pra viver na dissonância cognitiva deles”, completa o ativista.
Lucas Zanetti classificou o partido, que tem 48 deputados eleitos no parlamento português, como a terceira maior força política do país. Porém, a ascensão ao radicalismo nos temas imigração e nacionalismo da legenda são recentes.
Mesmo representando uma bolha específica da política de Portugal, Flavio Almada afirma que a mentalidade propagada reflete a branquitude, a burguesia e os laços que o país mantém com o colonialismo, especialmente em relação aos países africanos.
“A configuração europeia é feita em uma estrutura que depende de genocídio, do racismo, do colonialismo, do patriarcado, do racismo e das diferenças antagônicas. Quando há uma crise, essa máquina, configurada desta forma, mostra suas contradições de uma forma mais visível. O que a extrema-direita está fazendo agora é a natureza da Europa se repetindo”, finaliza.