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No Recife, leilão incentiva a valorização de obras de artistas periféricos

Sob a coordenação do educador e comunicador popular José Carbonel, o Leilão em Chamas faz circular a economia criativa das comunidades da capital pernambucana

Imagem mostra artistas em uma das edições do 'Leilão em Chamas' na rua segurando seus quadros

Foto: Imagem: Divulgação / Ubira Machado

12 de maio de 2022

Na capital pernambucana, um projeto promete fazer circular e valorizar a arte periférica. Intitulada Leilão em Chamas, a ação reúne obras de artistas ascendentes das comunidades e têm, entre seus objetivos, a proposta de dar visibilidade e retorno financeiro às produções, em sua maioria, marginalizadas. Sob a coordenação do educador e comunicador popular, José Carbonel (40), o evento incentiva a economia criativa da periferia desde 2018.

Carbonel conta que a ideia da ação foi importada da Bélgica, tendo como referência os eventos que divulgavam as obras de artistas locais e, caso não fossem arrematadas, iriam diretamente para o fogo. Uma dinâmica de compra de arte que chamou a atenção pela condução dramática, mas que conquistou o mundo. 

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No Recife, a ação ganhou corpo na Casa de Ideias, espaço situado na Imbiribeira, na Zona Sul do Recife, que reunia, entre as suas atividades, o evento Casa de Ideias Convida, que contava com a presença de dez grafiteiros, entre eles cinco homens e cinco mulheres, que passavam, a cada edição, pintando dez painéis. Durante a ação, também aconteciam apresentações de MCs locais, oficinas de formação e, por fim, o leilão das artes produzidas no dia.

“De início, nós queríamos manifestar e instigar esse mercado de artes periféricas, produzido por nós, que não era visto. Naquela época, a ideia era discutir formas de sustentabilidade da economia da periferia e como a arte poderia ser agente de mudança na vida de muitos que vivenciavam as vulnerabilidades que todos nós sabemos. Até então, não discutíamos, inclusive, o fator raça. A ideia era ter a arte como um caminho de desenvolvimento e esperança para qualquer pessoa da periferia que queria seguir nesse caminho”, explica Carbonel.

Para escoar a ideia e as produções, o Leilão em Chamas contou, entre seus parceiros, com o Coletivo Pão e Tinta – que reúne artistas e ativistas residentes da Comunidade do Bode, na Zona Sul do Recife – para realizar um festival, que descentralizou a venda das obras e propiciou que a ação circulasse. A parceria rendeu visibilidade e retorno financeiro, mas por questões internas, acabou ainda em 2019.

No ano seguinte, um desafio: a pandemia de Covid-19 poderia estagnar a venda das produções e colocar em risco o sonho dos artistas que visavam a ascensão para verem suas obras rodando para além do Recife ou serem colecionadas. Para Carbonel, foi o momento de rever como o leilão poderia seguir acontecendo e qual formato poderia agradar os artistas periféricos e o público consumidor, que ainda não era grande. 

A saída para o comunicador popular foi voltar às suas raízes. Carbonel conta que a nova formatação do leilão, frente à pandemia, foi dada em conversas com a mãe, Dona Leide, moradora da comunidade do Totó, na Zona Oeste da cidade, bairro onde nasceu e foi criado. Na localidade, ele já havia feito alguns eventos voltados ao fomento da produção cultural local, entre eles, a Semana de Arte Periférica, que incluiu, mostras de cinema e – para a sua realização pessoal – a abertura do seu ateliê. 

“Tive que ir para onde nasci e fui criado para formatar a ideia que eu estava construindo e adaptar para as adversidades que nós estávamos vivendo. O ócio fez isso. Conversando com minha mãe, vi que na casa dela poderíamos começar com as lives e organizar datas e horários para que as pessoas entrassem e vissem as obras. Um start para jogar o artista de periferia na rede”, conta Carbonel.

A nova formatação deu certo e foi sucesso entre os consumidores e colecionadores de arte. A ideia continuava como o princípio, caso não houvesse uma proposta de valor ou arremate, a obra iria para fogueira em frente a casa da mãe do comunicador popular. Tendo esta possibilidade, os espectadores não deixaram que isso acontecesse. 

A live do Leilão em Chamas no início tinha, em média, 300 pessoas e, após alguns meses, chegou a marca de 1.400 visualizações, com compradores de todo o Brasil. Produtores culturais divulgavam as datas do evento e passaram a incentivar a visibilidade e compra dos artistas que, até então, não viram retorno das obras que produziam. Mais artistas periféricos viram, na ação, uma possibilidade de serem vistos e passaram a enviar suas obras, na maioria das vezes, sem o medo de que poderiam ser queimadas.

Leia também: Artistas negros contam como seus trabalhos são também ferramentas de cura

“Nesse momento, eu e minha equipe vimos que a ideia dava caldo. As pessoas não deixavam as artes queimarem e os artistas entraram na pilha de que podiam vender suas obras ou verem suas artes queimarem, duas possibilidades que os animavam. Interessante foi que os consumidores passaram a entender que, caso fossem para o fogo, as obras ficariam na memória. Eles passaram a entender que poderiam ‘salvar’ os trabalhos, valorizando as técnicas e o tempo de produção de cada artista”, afirma Carbonel.

Entre os artistas que confiaram e passaram pela ação, o educador popular cita alguns que se orgulha de ter trabalhado e escutado suas histórias. Alguns nomes são: Auçuba, estudante de artes visuais, moradora do Curado, no limite para Região Metropolitana do Recife, que acreditou no fortalecimento da arte periférica através do leilão; Isa Pretta, do município de Igarassu, que iniciou no projeto durante a pandemia e, hoje, vive da venda de suas telas e de sua atuação como tatuadora; e Afro’G, nascido em uma família de catadores, o artista de 20 anos coleta objetos no lixo e passa a transformar em arte. 

Próximos passos

Questionado sobre o que espera das próximas edições do leilão, Carbonel conta que seu principal objetivo é dar continuidade à multiplicação da comunicação popular. Para ele, a ação é resultado do que aprendeu com incentivadores culturais antecessores, que abriram portas e sua mente para a valorização da produção artística periférica.

“Espero que os artistas, compradores, colecionadores e incentivadores enxerguem que isso é fruto de uma rede ancestral que segue atuando. Antigamente, era raro no convívio produzir e se ter arte. Hoje, nós conseguimos democratizar esse acesso. Ainda é pouco, um pingo no céu, mas é o pontapé de muita coisa que nós iremos conquistar”, reflete. 

O educador popular acrescenta que, entre seus desejos, está o de levar o Leilão em Chamas e os artistas que o compõem para fora do país, com o intuito de dar visibilidade e possibilidade de serem vistos por curadores. Para Carbonel, a ideia é que os artistas e os espectadores enxerguem a potência da produção artística periférica e possam contribuir na valorização e desenvolvimento de mais e mais artistas. 

“Tenho a certeza que o leilão vai prosseguir, através de quem acredita, de quem vê o nosso corre e que tá no sangue, até através das minhas filhas. Nós estamos fazendo parte de um projeto afrofuturista, que planeja crescimento no futuro e mais reconhecimento. As pessoas precisam entender que a periferia não é só morte e violência, mas, sim, sinônimo de economia criativa e sustentável. A gente sabe criar, fazer a nossa arte, só precisamos de portas abertas e sermos vistos. Meu sonho é ocuparmos as galerias e as semanas de arte e ocuparmos lugares embranquecidos. O recado é: se não existe mercado, a gente cria. E criamos”, dispara. 

Novas ações e residência artística

Em breve, Carbonel adianta que o Leilão em Chamas fará intervenções artísticas nas ocupações situadas na Avenida Guararapes – com pessoas que lutam pelo direito à moradia, no Centro do Recife, enquanto as novas datas são fechadas. Com confirmação dada através da página oficial da ação, o educador prevê que uma nova edição pode acontecer no dia 22 de maio e visa ajudar financeiramente os locais nas despesas diárias.

Ele ainda adianta que agosto será o mês oficial da próxima edição e conta uma novidade sobre as edições seguintes: o leilão deve iniciar uma nova ramificação, sendo responsável por ser o evento que vai reabrir o Museu da Abolição – o Centro de Referência da Cultura Afro-Brasileira no Recife – que há meses encontra-se em obras.

“Nós teremos uma nova vertente e estamos animados com isso. O Leilão em Chamas vai se apresentar enquanto exposição, iniciando em setembro e indo até o mês de novembro, contando ainda com intervenções artísticas, instalações e oficinas. A ideia é proporcionar um processo de vivência através da experiência coletiva. Ao todo, 25 artistas serão selecionados e espero que fiquem atentos para o edital que deve sair em breve. Suas produções, caso não sejam arrematadas nestes meses, irão para fogueira no encerramento”, finaliza.

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