Desde os primeiros anos de vida, muitas crianças negras enfrentam os impactos do racismo em ambientes que deveriam protegê-las e acolhê-las. Esses espaços incluem escolas, bairros onde vivem, praças, igrejas, centros comunitários, locais de lazer e até mesmo os próprios lares e vizinhanças.
Essa exposição precoce a uma violência tão cruel não apenas fere a autoestima e a segurança emocional como também deixa marcas profundas na saúde mental, comprometendo o pleno desenvolvimento, especialmente entre a primeira infância – dos zero aos seis anos –, fase crucial para a formação de quem elas podem se tornar.
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A psicóloga Thamiris Camargo, da Clínica Revitalis, especializada no atendimento e cuidado da saúde mental de crianças na primeira infância, jovens e adolescentes, explica que os impactos do racismo nos pequenos causam marcas profundas, tanto no desenvolvimento cognitivo como no psicológico.
“Seja de forma direta ou indireta, muitas crianças internalizam mensagens negativas sobre sua identidade racial, o que pode gerar uma imagem distorcida de si mesma. Quando expostas ao racismo, por muitas vezes resulta em um estado constante de alerta, com sintomas de ansiedade e a preocupação sobre a aceitação social, além do medo de sofrer danos”, defende a especialista.
Para a profissional de saúde, além de consequências emocionais, esse tipo de violência também influencia no desempenho escolar dessas crianças.
“A desconfiança e a sensação de estigmatização frequentes podem prejudicar a motivação e o comportamento na escola, comprometendo seu aprendizado”.
Crianças negras e o estresse crônico na primeira infância
A psicóloga esclarece que as crianças que são vítimas de discriminação racial têm maior propensão a desenvolver transtornos mentais, que irão aparecer na adolescência e na vida adulta, a exemplo de depressão, transtornos de ansiedade, estresse pós-traumático (TEPT), entre outros.
“O estresse crônico causado pela violência racial pode gerar efeitos duradouros ou até irreversíveis na saúde mental”.
Assim como mencionado pela especialista, um estudo realizado pelo Center on the Developing Child da Universidade de Harvard também esclarece como o racismo afeta profundamente o desenvolvimento infantil, contribuindo para o aumento do nível de estresse, fator que pode levar a um maior risco de doenças crônicas na vida adulta.
De acordo com a pesquisa, a exposição constante à discriminação racial e ao racismo estrutural ativa a resposta de estresse do corpo de forma prolongada, causando danos ao cérebro e a outros sistemas biológicos em desenvolvimento.
Esse desgaste pode ter consequências duradouras, incluindo problemas crônicos de saúde, dificuldades de aprendizado, alterações comportamentais e impactos severos na saúde mental e física ao longo da vida.
Racismo estrutural no ambiente escolar
O racismo estrutural, profundamente enraizado na sociedade brasileira, tem impactos devastadores na infância, especialmente em ambientes que deveriam ser de acolhimento e aprendizado, como as escolas.
A psicóloga Thamiris Camargo alerta que o racismo vai além de atos explícitos de discriminação, manifestando-se em práticas institucionais e sociais que perpetuam desigualdades.
“As escolas, que deveriam ser espaços de proteção, muitas vezes reforçam estereótipos raciais por meio de expectativas mais baixas e tratamento desigual em relação às crianças negras”, explica.
Segundo Thamiris, a falta de recursos em escolas localizadas em áreas com maior concentração de população negra é um reflexo direto do racismo estrutural.
“Enquanto escolas de bairros ricos recebem mais investimentos, instituições de comunidades periféricas enfrentam escassez de infraestrutura e materiais de qualidade, limitando as oportunidades de aprendizado dessas crianças”.
Além disso, a ausência de representatividade no corpo docente e nos materiais didáticos contribui para a invisibilização das crianças negras. A especialista destaca que “essa falta de identificação pode gerar um sentimento de exclusão e afetar a construção da identidade racial, especialmente na primeira infância”.
As microagressões, como comentários sobre o cabelo ou suposições depreciativas sobre a capacidade acadêmica de crianças negras, também são formas sutis de discriminação que têm efeitos negativos na autoestima e no desenvolvimento emocional.
“A falta de discussões abertas sobre desigualdade racial impede que educadores e estudantes compreendam os impactos do racismo, perpetuando um ciclo de invisibilidade e exclusão”, afirma.
Ela também ressalta a importância de preparar educadores para identificar e combater atitudes racistas, muitas vezes inconscientes, dentro das escolas.
Para ela, o combate ao racismo estrutural exige um compromisso coletivo, começando pela formação de profissionais de educação e pela inclusão de discussões sobre igualdade racial no currículo escolar.
Como identificar os efeitos do racismo na saúde mental?
Identificar os sinais de que uma criança está sofrendo os impactos do racismo pode ser uma tarefa desafiadora. Segundo a psicóloga, “as crianças muitas vezes não conseguem expressar diretamente suas emoções sobre situações de discriminação racial, o que faz com que os adultos responsáveis precisem estar atentos a mudanças sutis no comportamento e no estado emocional”.
Esses sinais podem incluir alterações no comportamento, como retraimento ou agressividade, mudanças nos interesses e hábitos, além de sinais emocionais, como tristeza persistente ou ansiedade.
Thamiris destaca que “a forma como o racismo afeta a criança depende de fatores como a idade, a intensidade das experiências discriminatórias e o suporte que ela recebe, tanto em casa quanto na escola”.
Para identificar e lidar com esses impactos, a psicóloga reforça a importância de um ambiente acolhedor e antirracista. “Quando os adultos criam um espaço seguro para a criança, ela se sente mais confortável para expressar o que está sentindo. Isso pode ser um passo essencial para superar os efeitos negativos do racismo”.
Para a especialista, a terapia psicológica é uma ferramenta poderosa para auxiliar a criança a entender e lidar com suas emoções. Ainda de acordo com ela, o apoio social, seja na família, na escola ou em comunidades, também desempenha um papel vital na promoção do bem-estar emocional.
Além disso, destaca ser essencial que pais, professores, cuidadores e profissionais de saúde estejam atentos e preparados para agir, criando redes de proteção e acolhimento para combater os impactos do racismo na infância.
Engajamento de comunidades na proteção das crianças negras
O provérbio africano “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, ajuda a entender a importância do engajamento de comunidades na proteção das crianças negras.
“As comunidades desempenham um papel fundamental, pois o acolhimento coletivo fortalece a autoestima das crianças negras, gera senso de pertencimento e as conecta com sua ancestralidade, marcada pela coletividade”, destaca a especialista em políticas públicas para Primeira Infância e Saúde das Mulheres, e vereadora reeleita do Rio de Janeiro, Thais Ferreira (PSOL).
A parlamentar ressalta que é fundamental criar redes de apoio entre famílias, escolas e lideranças locais, promovendo atividades culturais e educativas que valorizem a riqueza das culturas negra e indígena, incluindo os povos originários.
“Quando a comunidade se organiza para proteger e valorizar suas crianças, ela tem o poder de romper ciclos de exclusão e construir espaços de pertencimento e segurança.”
Políticas públicas no combate ao racismo na primeira infância
Para combater os efeitos do racismo nas crianças negras, é indispensável a implementação de políticas públicas e práticas institucionais que enfrentem as raízes do racismo estrutural e promovam ambientes mais inclusivos.
Uma das estratégias apontadas por Camargo se trata do investimento em treinamentos de educação antirracista para educadores.
“Os professores precisam ser capacitados para lidar com questões raciais de forma sensível e eficaz, desenvolvendo competências emocionais que os ajudem a acolher as crianças negras e a mediar situações de racismo no ambiente escolar”.
Além disso, a especialista destaca a importância de integrar a história e a cultura negra ao currículo escolar. “A representatividade importa. Quando uma criança negra se vê refletida nos materiais didáticos, dos professores e nas histórias contadas, ela se sente mais valorizada. Isso contribui para o fortalecimento de sua autoestima e identidade”.
Outro ponto crucial, segundo ela, é a criação de políticas antidiscriminação dentro das escolas. “Ter um protocolo claro para lidar com situações de racismo e espaços de diálogo sobre o tema é fundamental para garantir que todas as crianças se sintam respeitadas e seguras”, afirma. Além disso, Thamiris ressalta a necessidade de oferecer apoio psicológico.
Thais Ferreira (PSOL) tem desempenhado um papel central na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Ela, que preside a Comissão da Criança e Adolescente, atua de forma coletiva para combater o racismo estrutural e promover a igualdade racial.
O seu mandato tem adotado diversas ações para combater os impactos do racismo na primeira infância. Uma das principais iniciativas foi a aprovação de diretrizes no Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, com políticas urbanas voltadas à infância e um enfrentamento estrutural e radical do racismo desde suas raízes.
Além disso, foram criadas leis para garantir a saúde integral da população negra, em alinhamento com o programa municipal existente. Outro ponto importante foi a implementação do programa de fomento ao brincar, que visa assegurar o direito das crianças negras a esse direito que, muitas vezes, é negado a elas.
Para a vereadora, políticas públicas efetivas devem ir além do papel e incluir a aplicação das leis 10.639 e 11.645, que tornam obrigatórios o ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas.
Ferreira também destaca a necessidade de inclusão das infâncias negras no Plano Nacional pela Primeira Infância e a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
“É fundamental garantir o acesso à saúde desde o nascimento e criar espaços seguros onde as crianças possam construir uma identidade positiva”, acrescenta.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal para a produção de reportagens sobre a primeira infância.