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Desinformação e cotas raciais: discurso falacioso afeta promoção de ações afirmativas no país

Especialista alerta que a desinformação compromete o entendimento da sociedade sobre as cotas, que vão além de critérios raciais e atendem a demandas sociais e históricas
Protesto contra o sistema de cotas feito por alunos de escolas privadas de Brasília.

Protesto contra o sistema de cotas feito por alunos de escolas privadas de Brasília.

— Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

23 de janeiro de 2025

A desinformação é um fenômeno crescente no Brasil e está impactando o debate político sobre vários temas, entre eles, o das cotas raciais, que têm sido uma das políticas públicas mais eficazes no enfrentamento das desigualdades históricas que marcam a sociedade brasileira. 

Ao longo de décadas, a política de cotas permitiu que negros, indígenas e outros grupos sociais marginalizados alcançassem espaços antes inacessíveis, como universidades públicas e cargos de poder.  De acordo com a tese  “Cotas raciais: impactos e desafios”, apresentada no 50º Congresso Nacional dos Procuradores do Estado e do Distrito Federal, “as cotas raciais representam um passo fundamental em direção à concretização dos objetivos fundamentais da República, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.  

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No entanto, sua eficácia é frequentemente alvo de discursos falaciosos, muitas vezes impulsionados por posicionamentos ideológicos contrários à manutenção dessas medidas em ambientes de ensino e nos espaços de poder.

A Alma Preta fez uma busca no X (antigo Twitter) pela palavra-chave “cotas raciais” durante um período de 90 dias — entre 20 de novembro de 2024 a 20 de janeiro de 2025 — e encontrou posts contendo desinformação a respeito do tema. 

De acordo com o site especializado Desinformante, desinformação é quando uma informação falsa ou tirada de contexto é compartilhada intencionalmente para causar algum dano e/ou beneficiar alguém.  “O que diferencia esse tipo de conteúdo é a consciência de quem o compartilha: enquanto a informação incorreta pode ser disseminada sem intenção maliciosa, a desinformação envolve a ação deliberada de espalhar falsidades”, explica o site.

A Alma Preta observou e que o pico de menções às cotas raciais ocorreu durante a semana de 20 de novembro de 2024, Dia da Consciência Negra. 

Nesse período, também ganhou destaque em postagens no X a discussão do Projeto de Lei 1958/21, que estabelece a reserva de 30% das vagas em concursos públicos para pessoas negras, indígenas e quilombolas. O projeto foi aprovado no dia 19 de novembro do ano passado e retornou ao Senado devido às alterações realizadas pela Câmara dos Deputados.

As menções às políticas de cotas raciais foram feitas por políticos de direita que pautaram o assunto na rede social. A exemplo do post publicado pelo deputado federal Hélio Lopes (PL-RJ) em 16 de novembro de 2024, com mais de 17 mil visualizações, 2,4 mil curtidas, 705 compartilhamentos e 49 respostas. 

No texto, o parlamentar levanta questionamentos sobre os critérios que definem uma pessoa como negra. Ele pergunta: “O que define alguém como negro? Seria a cor da pele, o formato dos olhos, do nariz, da boca ou o tipo de cabelo? Para uma parcela da esquerda, nada disso seria suficiente. Segundo eles, para ser considerado ‘negro’ de verdade, é preciso seguir o que eles determinam, aceitando tudo sem questionar. Mas isso é uma falácia!”.

O parlamentar também argumenta que as cotas raciais não representam uma solução para reduzir a desigualdade no país, alegando que essa política apenas aprofunda a segregação entre as pessoas. 

“Cotas raciais não resolvem o problema. Essa segregação que promovem apenas nos afasta do que realmente importa. Nós, negros, somos livres para pensar, escolher e lutar por um país unido, sem divisões impostas de fora. Chega de tentar dividir o Brasil!”, conclui.

A deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP) também se manifestou sobre o tema, publicando a legenda: “Somos contra cotas raciais em concursos públicos”. O post, acompanhado de um vídeo com a declaração de Lopes, foi publicado em 14 de novembro de 2024 e alcançou 14,2 mil visualizações, além de registrar 2  mil curtidas, 862 compartilhamentos e 48 comentários.

No vídeo, o deputado do PL defende em plenário que é necessário acabar com a divisão entre pessoas pretas e brancas. 

“Precisamos acabar com essa divisão entre pessoas pretas e brancas. Muitas pessoas não percebem a questão dos concursos públicos e não se atentam para a diferença de critérios aplicados. A ideia de separar as pessoas por raça não é algo novo — isso foi feito na Europa, por Hitler, com consequências desastrosas. No Brasil, somos um povo miscigenado, com raízes em diferentes culturas e etnias. No entanto, a esquerda insiste em reforçar divisões entre pessoas brancas e não brancas.”

Os dois exemplos ilustram uma tentativa de moldar o debate sobre a política de cotas de maneira a favorecer a perspectiva da direita brasileira sobre o tema. 

Durante a reportagem, a Alma Preta também notou que, considerando o período dos últimos 12 meses, entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025, o pico de buscas no Google pelo assunto de cotas raciais aconteceu em novembro de 2024, coincidindo com os picos de atividade no X.

Diversos argumentos são frequentemente utilizados para desqualificar a política. Entre os mais recorrentes está o apelo à meritocracia, que questiona a legitimidade das cotas ao ignorar as desigualdades estruturais que elas buscam corrigir.

Estudantes da Universidade de São Paulo. (Foto: Cecília Bastos/USP Imagens)

Um estudo publicado em 2024 pela Revista Brasileira de Educação Médica investigou o desempenho dos alunos do curso de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, município do interior de São Paulo, focando nos graduados entre 2019 e 2021.

Os resultados indicaram que não houve diferenças significativas no desempenho acadêmico entre os alunos por ingresso universal e ação afirmativa, com médias de coeficiente de rendimento semelhantes.  

A análise do desempenho acadêmico revelou que as políticas de ação afirmativa não impactaram negativamente a qualidade do ensino, desafiando a ideia de que as cotas poderiam resultar em um desempenho inferior. 

Outra crítica frequente é a acusação de que as cotas promovem o chamado “racismo reverso”, supostamente discriminando brancos. Contudo, a realidade brasileira se mostra diferente — a maior parte das vagas em universidades e concursos públicos é ocupada por pessoas brancas.

Sobre o assunto, uma pesquisa divulgada em novembro de 2024 aponta que em 2010, a proporção de estudantes negros no ensino superior era de 10,7%, enquanto a de brancos chegava a 19,8%. Em 2019, embora ainda fosse inferior à dos brancos (42,5%), a participação de negros superou a marca de um terço, atingindo 38,2%. 

Os dados coletados pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra), foram baseados no Censo da Educação Superior, realizado e divulgado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). 

Segundo o diagnóstico elaborado pelo Cedra, entre 2014 e 2019, as cotas raciais desempenharam um papel crucial no aumento da presença de estudantes negros nas universidades públicas. 

Durante esse período, a proporção de alunos negros e pardos nas graduações passou de 26% para 43%, ultrapassando a porcentagem de brancos, que era de 40%.

Desinformação impacta debate público sobre cotas no país

A jornalista Alice de Souza investigou a desinformação no contexto brasileiro durante seu mestrado em Indústrias Criativas pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Em sua pesquisa, ela analisou os mecanismos de disseminação das fake news e os impactos dessas informações falsas na percepção pública sobre ações afirmativas.4

Alice aponta que as notícias falsas seguem sempre a “agenda do momento”. Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, as desinformações focaram nos temas em evidência, como o número de mortes, tratamentos e vacinas. Esse mesmo mecanismo é utilizado em discussões sobre cotas raciais.

“A desinformação não precisa ser 100% falsa. Uma notícia enganosa pode conter um componente de verdade, o que a torna mais eficaz. O objetivo não é criar algo completamente falso, mas confundir”, afirma.

No contexto das cotas, Alice destaca que essas políticas são frequentemente alvo de narrativas polarizadas.

“O debate sobre cotas é, em essência, sobre justiça social e reparação histórica, mas é distorcido para criar pânico moral e reforçar preconceitos. Por exemplo, dizem que cotas diminuem a qualidade do ensino superior ou que beneficiam pessoas sem mérito, ignorando dados concretos que comprovam o contrário”, explica.

Para ela, também é necessário considerar o papel das redes sociais, que se tornam ambientes férteis para a manipulação de informações. 

“O Brasil é um país extremamente engajado nas redes sociais, e isso facilita a propagação de fake news. Muitas vezes, essas informações são disseminadas por figuras públicas ou em espaços de poder, como rádios e igrejas, que deveriam promover debates construtivos”, alerta.

A desinformação também influencia decisões políticas sobre ações afirmativas. Alice explica que, além do projeto de poder vigente, a mobilização popular pode ser afetada por narrativas falsas. 

“Quando há desinformação, o debate perde profundidade e se transforma em uma disputa meramente política, afastando-se da questão real: a diminuição das desigualdades sociais e a promoção da justiça”, observa.

A jornalista defende a educação midiática como a principal estratégia para enfrentar a desinformação. “Sem preparar as pessoas para o uso crítico das ferramentas digitais, elas ficam vulneráveis a fake news, o que compromete decisões e o controle social sobre os governos”, argumenta.

Ela destaca ainda a necessidade de regulação das redes sociais, citando que empresas priorizam lucros em detrimento de um ambiente informativo saudável. 

“As plataformas preferem confundir as pessoas porque isso facilita a venda de produtos e a maximização de lucros. Regular essas redes é essencial, mas o debate precisa ser profundo e bem planejado”, reforça.

Além disso, Alice acredita no fortalecimento da pesquisa sobre desinformação no Brasil. “Temos muitos pesquisadores na área, mas a maioria das pesquisas é em inglês e focada em contextos estrangeiros. Precisamos adaptar esses estudos à nossa realidade, o qual é muito particular”, conclui.

Avanços, desafios e a luta contra a desinformação

O estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Julio César, de 20 anos, afirma que a política não foi apenas um meio de ingresso na educação superior, mas um divisor de águas em sua trajetória pessoal e acadêmica. 

“Eu participei das cotas de raça PPI (Pretos, Pardos e Indígenas) e de renda, e ambas me ajudaram muito a ingressar na Ufal. Se não fosse por elas, acredito que não teria conseguido entrar”, afirma.

O jovem Julio César ingressou no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) pelo sistema de cotas. (Foto: Acervo pessoal)

Julio destaca que, além de proporcionar acesso, a medida exerce um papel crucial na visibilidade de grupos historicamente negligenciados. “Essas pessoas não recebem visibilidade nem da sociedade, nem do governo. As cotas garantem que ocupem seus espaços na sociedade e sejam vistas. Isso contribui para criar mais igualdade, tornando as oportunidades mais justas.”

Ele relata que, na universidade, encontrou uma comunidade diversa e acolhedora. “Na Ufal, encontrei muitas pessoas parecidas comigo, que ingressaram por meio das cotas. Isso me trouxe muita satisfação e orgulho. Não se trata apenas de questões raciais, mas também de trajetórias, formas de pensar e maneiras de enxergar o mundo.”

Para o estudante, a política é fundamental na promoção de justiça social e igualdade. “Elas abrem portas para pessoas invisibilizadas, como pretos, pardos, indígenas e pessoas de baixa renda, permitindo que ganhem ascensão social e ocupem seus espaços. Isso contribui para que sejam mais respeitadas e vistas pela sociedade.”

Para o professor e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Danilo Marques, essas medidas afirmativas têm sido fundamentais para transformar a realidade de populações historicamente excluídas.

“A política de cotas tem cumprido o objetivo de tornar a universidade pública o mais diversa possível, oferecendo oportunidades de acesso e permanência para a população negra, comunidades quilombolas e indígenas”, afirmou Marques. 

Ele destacou que essas ações permitiram a formação de gerações de profissionais em diversas áreas, contribuindo para a ascensão social de grupos marginalizados.

Apesar dos avanços, Marques enfatiza que desafios estruturais ainda persistem, justificando a continuidade das cotas. Segundo ele, além de garantir o acesso, é crucial fortalecer os mecanismos de permanência estudantil, como programas de bolsas, restaurantes universitários e moradias. 

“No início da implementação dessas políticas, as ações de assistência estudantil eram bastante precárias. Embora tenham melhorado muito nos últimos anos, ainda há espaço para avanços”, destaca.

Ele também aponta que a desinformação e os discursos falaciosos representam ameaças reais à percepção pública sobre a importância das cotas. “Um dos maiores equívocos é afirmar que a cota não é social, mas racial. As cotas atendem a diversas demandas; elas são sócio-raciais”, explica. 

O professor ressalta que a resistência a essas políticas, muitas vezes alimentada por desinformação, reflete um esforço para minar a democratização dos espaços de poder. 

“Esses discursos criam visões equivocadas sobre as cotas, mas jovens formados por essas políticas transformam a trajetória de suas famílias e de suas comunidades. É fundamental combater essas narrativas e garantir transparência sobre os impactos positivos das ações afirmativas”, finaliza. 

Cotas raciais no país 

Em 2004, quando a Universidade de Brasília (UnB) se tornou a primeira universidade federal a implementar cotas raciais, o debate foi intenso. Muitos duvidavam de que alunos cotistas acompanhariam o ritmo dos não cotistas. 

Hoje, passados mais de 20 anos, a experiência da UnB é exemplo de sucesso — não apenas a diversidade aumentou, mas muitos cotistas se destacaram academicamente e seguiram carreiras brilhantes, desmentindo os mitos sobre a baixa capacidade.

A ampliação de espaços de poder também é um reflexo positivo das cotas. Em concursos públicos, por exemplo, negros e indígenas passaram a ocupar posições de destaque em áreas como o Judiciário e o Legislativo. 

Nas universidades, a Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012), foi um divisor de águas. Ela abriu as portas para milhares de estudantes negros e de baixa renda, vindos de escolas públicas, que até então viam o ensino superior como algo inalcançável. 

Em novembro de 2023, entrou em vigor a Lei 14.723/23, que revisou a política de cotas nas instituições federais de ensino superior e técnico. As principais mudanças incluem a alteração no mecanismo de ingresso de cotistas, a redução do limite de renda familiar para acesso às vagas reservadas e a inclusão de estudantes quilombolas como beneficiários.

A nova lei, que será monitorada anualmente e revisada a cada dez anos, teve origem no Projeto de Lei 5384/20, apresentado pela deputada Maria do Rosário (PT-RS) e outros parlamentares. O texto foi aprovado pelo Congresso com parecer da deputada Dandara (PT-MG) e sancionado sem vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

Mitos e verdades sobre as cotas raciais 

Beneficiam apenas pessoas sem mérito?

A ideia de que as cotas favorecem indivíduos sem mérito desconsidera as profundas desigualdades estruturais enfrentadas por grupos historicamente marginalizados. Estudos, como os realizados pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), demonstram que os alunos cotistas apresentam desempenho acadêmico equivalente ao dos demais estudantes. 

Criam divisões no Brasil e fomentam o “racismo reverso”?

Além de não existir “racismo reverso”, as cotas buscam corrigir desigualdades históricas e oferecer oportunidades a grupos sociais marginalizados, como negros, indígenas e quilombolas. 

Uma forma de discriminação?

As cotas não configuram discriminação, mas sim uma política de ação afirmativa. Seu objetivo é corrigir as disparidades geradas por séculos de escravidão e marginalização, assegurando que todos os cidadãos tenham acesso igualitário a oportunidades educacionais e profissionais.

Permanentes e não precisam de revisão?

As cotas são uma política temporária, projetada para reduzir as desigualdades sociais e raciais com o tempo. Embora não se trate de uma solução permanente, elas têm sido cruciais para promover a inclusão social e garantir a ascensão de grupos historicamente excluídos.

Não são eficazes para reduzir a desigualdade?

A implementação das cotas raciais tem gerado resultados positivos ao longo dos anos. Além de aumentar a diversidade nas universidades e nos concursos públicos, elas têm contribuído para a formação de profissionais altamente qualificados de origens diversas, impactando significativamente a ascensão social de populações marginalizadas.

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  • Formado em Jornalismo e licenciado em Letras-Português, morador da periferia de Maceió (AL) e pós-graduado em jornalismo investigativo pelo IDP. Com experiência em revisão, edição, reportagem, primeira infância e jornalismo independente. Tem trabalhos publicados no UOL (TAB, VivaBem, ECOA e UOL Notícias), Agência Pública, Ponte Jornalismo, Estadão e Yahoo.

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