“É melhor morrer por uma ideia que vai sobreviver do que viver por uma ideia que morrerá”. Na década de 1960, o ativista Steve Biko, importante nome na luta contra o Apartheid na África do Sul, já falava sobre a importância da luta coletiva pela emancipação do povo negro, sobretudo por meio da educação e do resgate da autoestima.
O legado de Biko, mesmo após 45 anos da sua morte, ainda soa atemporal e reflete sobre a necessidade de combate à discriminação racial, que ainda não foi superada e condiciona a população negra a níveis de desigualdades e barreiras que dificultam a sua ascensão social, econômica e educacional.
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Um exemplo é a história do ativista George Oliveira, que até os 22 anos não sentia orgulho da sua negritude. Enquanto um corpo negro, entrar na faculdade e acessar os espaços de produção de conhecimento ainda parecia ser um sonho distante. Mas foi ao conhecer um pré-vestibular exclusivo para pessoas negras que ele encontrou uma rede de apoio que fortaleceu o seu empoderamento negro e tornou o seu sonho realidade. Foi ali que George entendeu o que Steve Biko definiu como “Consciência Negra”, o ato de se apoderar da sua negritude como causa contra subversão imposta pela discriminação racial.
“A primeira vez que eu tive orgulho de ser negro foi aqui na Biko. Até os 22 anos eu não achava isso importante. Na minha vida, a Biko é importante na transformação interna dessa identidade negra que possibilitou o meu ingresso na universidade, tanto na graduação quanto no mestrado e agora no doutorado que curso na UFBA. Precisamos contar a nossa própria história e é nesse embate acadêmico que a gente vem produzindo conhecimento a partir das nossas histórias e dos nossos antepassados”, diz George Oliveira, ex-aluno do Instituto Steve Biko e atual gestor administrativo da instituição.
O pré-vestibular em questão é fruto do Instituto Beneficente Cultural Steve Biko, pioneiro na criação de iniciativas voltadas para o ingresso de pessoas negras no ensino superior em todo o Brasil e que há 30 anos atua para a sua inserção e permanência nos espaços de produção de conhecimento, com base no resgate dos valores africanos e afrodiaspóricos.
Agora, após mais de dez anos de luta, o Instituto aposta no lançamento da Faculdade Steve Biko, primeira instituição superior na Bahia voltada para uma educação pautada no antirracismo, inclusão e diversidade, com a proposta de reverter a lógica eurocêntrica e colonial do conhecimento. A faculdade, ainda em fase de estruturação, será sediada em Salvador, considerada a segunda cidade mais negra fora de África, e representa o resgate do protagonismo negro nos espaços de conhecimento.
“A Biko é uma contribuição pessoal mas também para dentro da academia, enegrecendo esse conhecimento que é bastante eurocêntrico, e a faculdade Steve Biko vai ter esse próprio centro de conhecimento. A Biko continua com o pré-vestibular e outros projetos, que vão estar nessa disputa acadêmica com outras universidades que existem, e também vai ter o seu próprio centro de formação de lideranças e de produção de conhecimento”, completa George Oliveira.
Quando o Instituto Cultural Beneficente Steve Biko surgiu, em 1992, a presença de pessoas negras nas universidades públicas na Bahia e no Brasil era quase inexistente. Foi quando um grupo de estudantes decidiu criar um organismo para discutir e inserir negros e negras nas universidades a partir do desenvolvimento de projetos embasados na luta antirracista do ativista sul-africano Steve Biko e de outras lideranças ao redor do mundo. É dessa forma que surge o primeiro pré–vestibular voltado para esse público no Brasil, oferecendo suporte educacional, psicológico e assistencial para o ingresso no ensino superior.
Além disso, o Instituto também conta com outros projetos, como o Programa Oguntec, estimulando o acesso de estudantes nas áreas das Ciências e Tecnologia e o Programa de Intercâmbio, que consiste na troca de experiências, debates e visitas, com alunos negros e negras de outros países. Hoje, o Instituto é reconhecido como um patrimônio da comunidade negra e coleciona prêmios por sua atuação social, como o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e o Prêmio Cidadania Mundial, concedidos pela Comunidade Bahá’í do Brasil.
Resgate
Baseada na mesma concepção político pedagógica dos projetos do Instituto Biko, a faculdade surge a partir dos recortes sociais que atingem os corpos negros, seja do ponto de vista socioeconômico ou da falta de acesso a direitos básicos, como educação de qualidade. Para o educador e um dos primeiros integrantes do Instituto, há 29 anos, Ivo Ferreira, a instituição vem preencher uma lacuna que está escancarada pelo racismo nas suas diversas vertentes.
“Era muito difícil entrar nas universidades, principalmente na universidade pública na Bahia há 30 anos atrás. Ainda está difícil para a nossa população? Está. Mas digamos que criamos acessos melhores. A dificuldade é entendermos que não adianta só dar acesso ao aluno na universidade, ele também precisa ter a permanência garantida. Se manter na universidade é muito difícil porque no Brasil, em inúmeras vezes, a nossa população tem que trocar a sala de aula por um prato de comida”, comenta o educador, que é diretor de comunicação da Biko.
O resgate da afrocentricidade é o principal ponto de partida para fortalecer o pensamento negro em espaços historicamente ocupados e explorados pela branquitude, como as universidades, e dar voz para a luta antirracista.
“Se você notar o número de brasileiros desprivilegiados por fome, falta de moradia ou saneamento, você vai notar que parte dessa população é negra. O número carcerário no Brasil hoje é negro. Mas quando você chega na universidade, ela diminui o número de negros, principalmente, nos chamados cursos de maior prestígio, aqueles grupos que formam as principais tomadas da sociedade e dá possibilidade de cidadania. Então, o antirracismo tem que acontecer. Hoje, no Brasil, eu não vejo possibilidade de que exista evolução social sem uma briga antirracista”, pontua Ivo Ferreira.
Projeto
O prédio da faculdade, onde antigamente abrigava um casarão, está localizado na região do Campo Grande, centro de Salvador, e foi cedido pelo governo da Bahia em 2011. O edifício conta com três andares e a expectativa é que os alunos contem com salas de aula, auditório, biblioteca, brinquedoteca e demais espaços de convivência e produção educacional aliada à inclusão e à luta antirracista. A previsão é que as obras sejam concluídas até o final do ano.
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Com expectativa de início das atividades em 2023, a faculdade deve contar com dois cursos: Pedagogia e História. A escolha pelas graduações é estratégica e visa formar educadores e educadoras que fortaleçam um olhar plural e antirracista desde o ensino básico. Até o momento, os cursos estão em fase de submissão ao Ministério da Educação (MEC).
“Pretendemos iniciar com dois cursos: Pedagogia e História, provavelmente duas licenciaturas, e será aberta ao público que tenha interesse em participar de uma universidade que respeita os valores africanos na construção do conhecimento, o que difere da maioria das outras universidades que existem e tratam, reproduzem e constroem um pensamento eurocêntrico. A ideia não é só ter África como centro, mas ter essa diversidade das contribuições de todos os povos, mas valorizando essa questão africana e da diáspora africana”, explica George Oliveira, gestor administrativo do Instituto.
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Entendendo as desigualdades que atingem a população negra, a faculdade também vai oferecer uma rede de suporte psicológico e de assistência social aos alunos e alunas. Segundo a diretora pedagógica e professora da Steve Biko, Jucy Silva, o objetivo é criar uma faculdade comunitária que também pensa na permanência dos estudantes e na inclusão dos alunos e alunas no mercado de trabalho.
“Para a faculdade Biko levaremos toda a expertise que a gente tem de Núcleo de Desenvolvimento de Pessoas para cuidar da permanência e também pensar na saída do estudante: como ele vai ser inserido no mercado de trabalho, como ele vai ser orientado e quais caminhos seguir após a graduação dentro da área”, diz Jucy Silva.
Atualmente, o Instituto Steve Biko conta com o apoio financeiro de entidades nacionais e internacionais que apoiam seus projetos. Com recursos limitados, a instituição também busca por aportes que possam fortalecer a concretização da faculdade, com doações de cadeiras, equipamentos, pintura, entre outros. Mais detalhes podem ser consultados no site.
No momento atual do Brasil e das sucessivas tentativas de desmonte da educação e da história do povo negro, a educadora Jucy Silva diz que é preciso que o país adote práticas que busquem reduzir uma lacuna educacional entre alunos brancos e negros.
“Nós temos muitos estudantes fora das escolas hoje por conta que ele está, junto com a sua família, batalhando a sua sobrevivência e isso às vezes parece que não é considerado. As escolas privadas não mexeram em nada. Tudo o que elas ofereciam antes elas vão oferecer agora, então isso aumenta a distância perversa educacional entre estudantes negros e pobres, oriundos da escola pública, e estudantes brancos e ricos das escolas privadas. Uma faculdade da Steve Biko vem nessa contramão. Ela vem oferecer o que não está sendo oferecido”, diz a professora.
Para o professor Ivo Ferreira, é fundamental que se fortaleça iniciativas que possam reverter o sistema social que é imposto à população negra. “Se o Brasil continua dessa forma e não presta atenção em ações como as que o Instituto Steve Biko está fazendo, nós vamos cair de novo naquela coisa de um país com um poço social tão grande que ninguém vai dormir”, completa.
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