As redes comunitárias de mulheres negras desempenham um papel fundamental na promoção do desenvolvimento infantil das crianças negras, especialmente na primeira infância.
Essas iniciativas não apenas oferecem cuidados imediatos às crianças como também fortalecem a solidariedade e enfrentam desigualdades estruturais presentes na sociedade brasileira.
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A professora Juliana Prates, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destaca a importância dessas redes de proteção dedicadas ao cuidado infantil.
Ela enfatiza que, em contextos de vulnerabilidade, a construção de uma rede de apoio e solidariedade é essencial para assegurar o desenvolvimento infantil. Prates cita o provérbio africano “é preciso uma aldeia para educar uma criança” para ilustrar a importância das redes comunitárias.
“Se olharmos atentamente para as formas de cuidado estabelecidas por mulheres negras, perceberemos que elas não são baseadas em um modelo solitário, mas sim em uma lógica coletiva e comunitária”, afirma.
Para ela, essas mulheres encontram na solidariedade comunitária uma forma de resistência e sustentação emocional. Além disso, observa que, em contextos de vulnerabilidade, é possível observar uma ausência — ou, pelo menos, uma dificuldade maior de acesso — a políticas públicas essenciais, como creches, educação, saúde e lazer.
Diante deste cenário, a rede de solidariedade que se forma ao redor das famílias torna-se crucial para garantir o desenvolvimento infantil. Ela não só fortalece o bem-estar emocional das mães, que se sentem mais protegidas e amparadas, como também oferece segurança às crianças, que percebem a existência desse apoio comunitário.
Prates também destaca que, muitas vezes, a sociedade tende a enxergar os espaços de vulnerabilidade como lugares marcados pela ausência de apoio. No entanto, a realidade é oposta: nesses espaços, veem-se laços de solidariedade e colaboração.
A educadora exemplifica isso com a prática comum na Bahia, onde mães pedem a vizinhas para “passar um olho no meu filho”, um verdadeiro suporte comunitário entre as mulheres.
A professora também observa que o racismo estrutural impõe barreiras que dificultam o desenvolvimento infantil, restringindo o acesso a políticas públicas essenciais para o desenvolvimento integral das crianças negras, perpetuando desigualdades que se arrastam ao longo das gerações.
Ela destaca que as mulheres negras sempre foram consideradas aptas para o cuidado dos filhos da elite branca, historicamente atuando como babás responsáveis pelo cuidado e afeto das crianças sob sua supervisão.
Prates enfatiza que a maternidade, de forma geral, sempre foi vista como um espaço exclusivo das mulheres, carregado de culpa e de um significado compulsório.
Além disso, o papel do cuidado é amplamente atribuído às mulheres, e, no caso das mulheres negras, essa carga se intensifica, resultando em uma sobrecarga de responsabilidades.
A professora observa que as formas de cuidado estabelecidas por mulheres negras não são baseadas em um modelo solitário e sim em uma lógica coletiva e comunitária.
Mulheres negras fortalecem redes de cuidado e combatem desigualdades
Iniciativas como a do Coletivo Mães Pretas Presentes reafirmam a importância das redes de cuidado. Idealizado por Thainá Baltar, que mora no Rio de Janeiro, a iniciativa surgiu da necessidade de criar uma rede de apoio para crianças negras e suas mães.
Thainá percebeu a urgência de abordar a parentalidade com um recorte racial e, ao conversar com outras mães e pais negros, ficou claro que as mulheres enfrentavam desafios específicos e careciam de espaços para trocar experiências e estratégias de criação.
O impacto da iniciativa é visível na autoestima das crianças, que, ao vivenciarem o letramento racial, podem se fortalecer contra os estigmas e o racismo estrutural desde cedo.
Além disso, as mães que se aproximam do coletivo também vivenciam uma transformação profunda. Muitas chegam carregadas pelas cicatrizes do racismo, mas ao ingressar na rede encontram o apoio necessário para ressignificar suas histórias.
“Essa troca fortalece não apenas os vínculos entre as mães, mas também contribui para a construção de estratégias de criação mais conscientes e fortalecidas, visando criar filhos empoderados e cientes de sua identidade”, acrescenta.
Atualmente, o coletivo atende cerca de 250 famílias, o que inclui crianças, adolescentes e adultos. Ela conta que a iniciativa tem promovido mudanças significativas na autoestima das crianças negras.
“Em relação ao impacto nas crianças, vejo mudanças significativas, principalmente na autoestima e na autoimagem delas. Sabemos que o racismo estrutural afeta negativamente a forma como nos vemos, e isso começa na infância. No entanto, iniciativas como a nossa, que proporcionam letramento racial, ajudam a desconstruir esses estigmas”, defende.
Outro exemplo de rede comunitária formada por mulheres negras é a Ciranda Acolhedora, iniciativa que promove o acolhimento comunitário para famílias negras na periferia de São Paulo, idealizado pela Edite Neves. Inspirada pela mãe, Eurides, que mantinha a casa aberta para apoiar vizinhos e parentes, ela encontrou na maternidade e na profissão de doula o caminho para transformar o cuidado em uma ferramenta de resistência.
“Sempre existiu a necessidade de criar espaços de cuidado”, conta. O aprendizado dentro de casa, combinado com a inquietação sobre como e quando começa o processo educativo, a levou a cursar pedagogia. Foi durante essa trajetória que ela percebeu que o acolhimento começa antes mesmo do nascimento. “Talvez a educação comece desde o ventre”, reflete.
O projeto começou com atendimentos pós-parto e se expandiu para encontros coletivos com famílias. A proposta é criar um espaço de escuta, onde as necessidades das crianças e das mães sejam consideradas. “A criança se sente confortável com esse processo? Se não, o acolhimento não acontece”, explica Edite.

A abordagem interdisciplinar da Ciranda inclui o uso de fitoterapia, práticas de autocuidado e rodas de conversa. Para Edite, a troca de saberes entre as mulheres é central. “Ao longo do tempo, fui trazendo minhas irmãs para esse caminho: uma fez pedagogia, outra seguiu para a enfermagem. Assim, fomos ampliando nosso repertório e construindo uma rede”. Hoje a irmã Elis Neves também faz parte da iniciativa.
“A luta pelo cuidado digno atravessa o projeto. Muitas famílias negras não têm acesso a serviços de acolhimento, ou quando têm, encontram um atendimento desvalorizado”, relembra Edite.
Para driblar essa desigualdade, ela propôs um sistema de financiamento solidário — famílias com maior renda pagam o valor integral, possibilitando que outras, com menos recursos, tenham acesso ao acolhimento.
Políticas públicas para o desenvolvimento infantil
Além das condições familiares e sociais, políticas públicas são essenciais para garantir o desenvolvimento infantil conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No entanto, em contextos de vulnerabilidade, o acesso a serviços como creches, educação e saúde é muitas vezes limitado, tornando as redes de solidariedade ainda mais importantes.
Outro fator determinante é o impacto do racismo estrutural no acesso das crianças negras aos serviços públicos. Prates observa que o racismo estrutural perpetua essa desigualdade ao afetar tanto a distribuição de bens quanto o acesso a políticas públicas e ao sistema de garantia de direitos.
A professora Juliana Prates destaca que a exclusão social das populações negras no Brasil tem raízes históricas e se manifesta desde o período da escravidão, perpetuando desigualdades que limitam as oportunidades dessas crianças desde a primeira infância.
Para a especialista, é necessário investir em políticas de visitação domiciliar e em iniciativas que atuem dentro dos próprios contextos comunitários, entendendo que esses espaços são potentes na produção de saúde e cuidado.
“Por isso, é essencial fortalecer as estratégias comunitárias e reconhecer a luta das comunidades por direitos fundamentais, como acesso a espaços de lazer, transporte, creches e o direito das crianças de brincarem com segurança em seus territórios”, finaliza.