Desde o dia 27 de janeiro, a República Democrática do Congo (RDC) tem sido alvo de uma nova investida militar do exército de Ruanda e do M23, um grupo rebelde de oposição ao regime de Kinshasa.
A tomada das cidades de Goma, em 27 de janeiro, e Bukavu, em 17 de fevereiro, capitais das províncias do Norte Kivu e do Sul Kivu, respectivamente, são mais capítulos do conflito.
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A RDC vive em guerra há cerca de 30 anos, com pequenos intervalos de paz, e somente entre 1998 e 2007 cerca de 5,4 milhões de pessoas perderam as vidas, segundo o Comitê Internacional de Resgate (IRC).
Por detrás dos ataques de Ruanda, está a busca pelas reservas minerais da República Democrática do Congo. Um dos minérios mais almejados é o coltan, necessário para a produção de baterias elétricas de carros.
“Ruanda faz uma guerra para roubar os recursos naturais da região”, afirma o ambientalista congolês Alexandre Baraka, coordenador da Unidade de Gestão de Projetos de Carbono, um projeto visa diminuir as emissões de carbono da RDC.
Depois do avanço do M23 sobre Goma, Baraka saiu da cidade por questões de segurança e agora está em exílio.
Ruanda e M23
Os ataques que se iniciaram em 27 de janeiro têm uma característica diferente: a presença explícita do exército ruandês. Ruanda sempre negou envolvimento no conflito e as acusações de que financia o M23.
Mesmo que o presidente Paul Kagame tenha dito não saber da existência de tropas ruandesas no território congolês, um relatório da ONU aponta para a presença de pelo menos 3 mil soldados ruandeses no país vizinho.
O M23 é uma milícia que atua na parte leste da República Democrática do Congo, formada por uma maioria de pessoas da etnia tutsi, o grupo que foi a principal vítima do genocídio em Ruanda, em 1994.
Alexandre Baraka conta que esses ataques mais recentes só intensificam algo que já acontece, a ocupação de locais estratégicos da RDC para saquear minerais.
“O modus operandi da guerra é o de olhar para os recursos naturais. Tem o caso da mina de Roubaïa, território de Masisi, hoje ocupado pelo M23 e seus auxiliares, que continuam a explorá-la”, afirma.
Em maio de 2024, o M23 já havia dominado a mina de Roubaia, no distrito de Masisi, no leste da República Democrática do Congo, rica em coltan.
Tecnologia não chega a RDC
Avaliação feita pela S&P Global Mobility, empresa que analisa o setor de automóveis, aponta para um crescimento de 30% nas vendas de carros elétricos em 2025. A expectativa é de que a quantidade saia de 11,6 milhões de unidades vendidas em 2024 para 15,1 milhões neste ano.
Apesar do maior número de carros elétricos no mercado e da grande quantidade de coltan, veículos desse tipo não são vistos na RDC, conta Guillaume Kalonji, integrante do movimento Levante-se Congo.
“A gente vê alguns países desenvolvidos com carros elétricos nas ruas, painéis de energia solar nas suas indústrias. No meu país, na República Democrática do Congo, eu nunca vi um carro elétrico. A primeira vez que eu usei um carro elétrico foi nos Estados Unidos. Mas a RDC produz 70% dos minerais necessários em todo planeta para essa transição”, compara Kalonji, referindo-se à transição energética e à redução do consumo de combustíveis fósseis.
Kalonji era morador da cidade de Bukavu, mas está em exílio desde a chegada do M23 na capital do Kivu do Sul.
Contradições da nova matriz energética
Justin Mutabesha, membro da Associação de Jovens Visionários para o Desenvolvimento do Congo, diz acreditar na potência energética do país.
“A RDC está no centro da África e é um país grande, importante para os recursos minerais das mudanças climáticas. O país é rico em biodiversidade, com minerais no solo e no subsolo. Um dos exemplos é o cobalto, um mineral estratégico, que tem um papel importante na transição energética”, afirma. Ele é outro a ter deixado o país depois do avanço do M23.
A transição energética é o processo de mudança das fontes de energia do petróleo para energia renovável. O modelo dominante dessa transição prevê um maior uso de tecnologia eletrônica, e o cobalto é um dos minérios usados na fabricação de baterias de íons de lítio. Elas são as usadas em computadores, smartphones, veículos elétricos e cigarros eletrônicos.
Em 2022, a República Democrática do Congo exportou 68% do cobalto vendido no mundo.
Para a Unicef, a transição energética justa é a necessidade de alterar a matriz energética com a busca por justiça social e para evitar a propagação das desigualdades.
Guillaume Kalonji conta ter ficado empolgado na primeira vez que ouviu falar sobre transição justa, uma possibilidade de incluir todo mundo no processo de adaptação dos combustíveis fósseis para a energia limpa. “Eu fiquei feliz de ouvir que era um plano de não deixar ninguém para trás”.
O conceito, contudo, está distante da realidade. Alexandre Baraka tem vontade de “dar um grito de alarme” para que realmente exista “justiça climática”.
“A comunidade local da província do Norte Kivu sofre enormemente”, desabafa.
Gestor de um projeto para diminuir a emissão de gás carbônico na RDC, Alexandre Baraka afirma que o país, detentor das maiores reservas minerais do mundo de cobalto, não tem recebido investimento dos países do Norte global para o desenvolvimento da RDC.
“Nós não recebemos nada. Devemos exigir que ainda haja uma boa justiça climática, justiça distributiva… Justiça onde recompensamos a todos de acordo com o seu poder e de acordo com as reservas que têm no seu país”, afirma Baraka.
RDC sofre colonialismo contemporâneo, diz ambientalista
O colonialismo é a dominação de um país sobre o outro por meio econômico, cultural ou de ocupação militar.
No continente africano, um dos marcos mais importantes foi a Conferência de Berlim, que ocorreu entre 1884 e 1885. Nela, países europeus partilharam o continente africano entre eles, com o objetivo de organizar a exploração de recursos e a criação de novos mercados. As fronteiras desenhadas ignoraram divisões étnicas e culturais dos povos africanos.
A República Democrática do Congo foi um desses “pedaços”. O território foi, primeiramente, propriedade pessoal do rei Leopoldo II e, a partir de 1908, tornou-se propriedade da Bélgica.
Estima-se que o regime do rei Leopoldo II assassinou 10 milhões de congoleses. Nesse período, o país sofria da exploração forçada de borracha e marfim. Em 2022, o Rei Philippe, herdeiro do trono de Leopoldo II, visitou o país africano como forma de se desculpar do passado colonial.
De 1908 até o fim do colonialismo belga, em 1960, houve pressão popular para que o país africano concluísse seu processo de independência. Patrice Lumumba foi o líder da luta e se tornou o primeiro-ministro do país.
Nos anos seguintes, nas décadas de 1960 e 1970, parte importante das nações africanas conseguiram alcançar a independência dos países europeus.
A RDC, contudo, viu Patrice Lumumba ser assassinado em 1961, em uma ação orquestrada por belgas e americanos, o que gerou uma instabilidade no país.
Guillaume Kalonji acredita que a República Democrática do Congo vive hoje um novo formato de colonização.
“Quando eu era estudante, nossa professora ensinava que a colonização era algo do passado. Estava acabada. Mas quando a gente olha para a África hoje e, especialmente, para a RDC, é como se vivêssemos em uma nova colonização”, conta.
Para ele, as empresas e os países europeus compram os minérios congoleses a preços muito baixos, inclusive sobre o custo de uma guerra.
Guillaume Kalonji ainda diz que as pessoas de fora têm maneiras de acessar os minérios congoleses de modo legal, mas optam por outros caminhos.
“Em algumas partes da província de Katanga, existem crianças trabalhando com menos de 18 anos, mesmo menos de 10 anos. E essas crianças estão trabalhando nas minas e algumas delas não recebem nenhum pagamento”, afirma.
Ele ainda conta que as crianças que são pagas recebem US$ 1 ou US$ 2 por dia e deixam de frequentar às escolas.
“Então isso parece uma geração condenada para estar no banco de trás do jogo que o mundo está jogando da ação climática para o desenvolvimento. Esse tipo de injustiça é uma das coisas que vai manter a República Democrática do Congo no lado dos países pobres”, lamenta.
O papel das grandes corporações
Mutabesha, da Associação de Jovens Visionários para o Desenvolvimento do Congo, acredita que “a guerra de 30 anos na RDC beneficia empresas poderosas”.
Um exemplo é a Apple, que foi acusada recentemente de comprar minerais extraídos de maneira ilegal do país. O presidente da RDC pediu uma investigação para apurar a compra da empresa de três minerais: tântalo, tungstênio e estanho.
A empresa negou as acusações, afirmou que recicla a maior parte dos minerais que utiliza e que deixou de comprar minerais dos dois países, RDC e Ruanda.
Guillaume Kalonji pensa que indústrias poderiam ser construídas no país, para desenvolver a RDC e empregar a juventude congolesa.
“Como os jovens não têm emprego, eles aderem a grupos armados, uma espécie de ocupação”, lamenta.
Ele também conta que dois tipos de pessoas se beneficiam da crise na República Democrática do Congo, uma são as pessoas que vêm de países desenvolvidos para acessar os minerais. As outras são políticos que aceitam a corrupção que vai deixar alguma coisa nos seus bolsos, mas mantém os congoleses pobres.
“O branco vem, ocupa o lugar, alguns até têm um local para aterrissar seus pequenos aviões, fazem o que precisam e vão embora”. Alguns desses lugares têm, inclusive, a segurança feita por grupos armados.