Desde cedo, o contato com a música, a dança, a culinária e as histórias ancestrais fortalece a identidade e a autoestima de crianças negras. Em um país marcado pelo apagamento das raízes africanas, manter essas tradições vivas é um ato de resistência e valorização da cultura afro-brasileira.
O brincar também desempenha um papel essencial nesse processo, sendo uma ferramenta poderosa de aprendizado e conexão com a ancestralidade. Jogos, canções e narrativas que refletem as origens das crianças negras fortalecem o senso de pertencimento e preservam memórias coletivas, tornando-se estratégias eficazes para o combate ao racismo estrutural desde a primeira infância.
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Brincadeiras afro-brasileiras garantem transmissões de saberes
Nesse contexto, iniciativas que resgatam e valorizam brincadeiras de matriz africana têm ganhado espaço no Brasil. Mais do que momentos de lazer, essas práticas reforçam laços culturais e garantem a transmissão de saberes às novas gerações.
Um exemplo disso é o “Catálogo de Jogos e Brincadeiras Africanas e Afro-Brasileiras” (Editora Aziza, 2022), organizado por Helen Santos Pinto, Luciana Soares da Silva e Míghian Danae.
A obra resulta de uma ampla pesquisa conduzida por estudantes da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Entre 2020 e 2021, os pesquisadores coletaram relatos de familiares e
comunidades de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe, reunindo um vasto acervo de jogos que atravessam gerações.
O resultado é um catálogo que não apenas documenta brincadeiras tradicionais, como também propõe sua incorporação ao cotidiano escolar e comunitário, promovendo o reconhecimento da herança cultural afrodescendente.
“Intencionamos, ainda, fortalecer o diálogo entre países africanos de língua oficial portuguesa e o Brasil no âmbito da educação, fomentando a integração por meio de ações educativas que demonstrem a relação que há entre esses países nos mais diversos campos do conhecimento”, destacam as organizadoras na apresentação da obra.

Elas explicam que o objetivo da publicação é mostrar que existem diversas formas de integração entre as pessoas, além das que normalmente conhecemos. Essas possibilidades podem ser alcançadas quando nos encontramos, passamos a nos conhecer melhor e entendemos quem somos a partir de nossa história, construindo coletivamente o futuro que desejamos.
No prefácio do catálogo, Débora Alfaia da Cunha defende que apostar no lúdico como estratégia para a educação das relações étnico-raciais não é uma visão ingênua da realidade e sim uma abordagem criativa e propositiva que visa transformar as relações sociais.
Segundo Débora, essa estratégia se baseia na reciprocidade, no respeito e na afirmação da diversidade como direitos fundamentais. Ela destaca que, no Brasil, onde as estruturas raciais são profundamente enraizadas, propor uma nova forma de vivenciar essas relações — por meio de um “encontro feliz com nossa ancestralidade africana e afrodiaspórica” — é um ato de rebeldia e rompimento com os paradigmas estabelecidos.
Nesse contexto, o uso do lúdico não é apenas uma ferramenta pedagógica, mas uma forma de resistência e transformação social, capaz de desafiar e desmantelar os ciclos de opressão que ainda perduram.
Escola como espaço de resistência
O papel da educação infantil é essencial nesse processo. A aplicação da Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, encontra nas brincadeiras uma ferramenta potente para cumprir esse objetivo.
Iniciativas pedagógicas, assim como a citada anteriormente, têm incorporado jogos africanos e afro-brasileiros em suas práticas, promovendo um aprendizado mais inclusivo e representativo.
O contato com elementos da cultura afro-brasileira na primeira infância é fundamental para a construção da identidade e do pertencimento racial das crianças negras. Como explica o pedagogo e doutor em educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Luciano Amorim (Idáhunsi), as infâncias não estão isoladas dos contextos sociais e, no Brasil, são marcadas racialmente.
“Ter contato com elementos da cultura afro-brasileira na primeira infância significa conectar-se com a própria história, com os ancestrais e com os contextos interseccionais”, afirma o também coordenador de Educação e Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (Semed) e membro do Ilê Ègbé Vodun Azírí.
Histórias, músicas e brincadeiras afro-brasileiras desempenham um papel crucial nessa formação identitária. Segundo Amorim, esses elementos são atravessados por ludicidade e corporeidade, aspectos fundamentais para o desenvolvimento infantil.
Segundo o especialista, as histórias, músicas e brincadeiras afro-brasileiras são fundamentais na formação da identidade das crianças negras, pois carregam elementos lúdicos que envolvem números, musicalidade e corporeidade, essenciais para essa construção.
“Pensar a formação da identidade das crianças negras sem considerar a ludicidade que perpassa a herança africana e brasileira é ignorar a nossa participação na construção da identidade nacional”, destaca.

Desafio da inclusão da cultura afro-brasileira na educação
No ambiente escolar, a inclusão da cultura afro-brasileira no currículo é um desafio que envolve a disputa pelo espaço educacional. “O currículo oficial ainda é colonial e branco”, pontua Amorim, ressaltando a necessidade de revisitar a história e as narrativas que compõem a identidade nacional.
Para tornar o currículo mais inclusivo, o pedagogo sugere a adoção de práticas pedagógicas antirracistas, revisão dos projetos políticos pedagógicos, adaptação dos materiais didáticos e um olhar atento para elementos como alimentação escolar e transporte.
A centralidade da raça nas práticas pedagógicas é um passo essencial para garantir uma educação que reconheça e valorize a diversidade. Para Amorim, “incentivar, instituir, reconhecer a raça como centralidade” é fundamental para repensar os processos educacionais, como os projetos políticos pedagógicos e as ações cotidianas que ocorrem nas escolas.
Segundo o educador, “o processo de pensar as práticas pedagógicas deve revisitar os cotidianos”, considerando os elementos como o acolhimento da alimentação, o acesso ao livro e o transporte escolar.
Além disso, ele destaca que é preciso estabelecer um diálogo constante com as famílias, pois, como destaca a especialista, “o elemento da racialidade está presente nas minúcias do fazer a escola”, incluindo detalhes como o acolhimento e a inclusão dos estudantes.
De acordo com o coordenador, ignorar essa perspectiva, é “desconsiderar os sujeitos que estão ocupando especialmente as escolas públicas do nosso país”. E ainda destaca que esse reconhecimento da racialidade nas práticas educacionais é, portanto, crucial para a construção de um ambiente escolar mais justo e inclusivo para todos.
Estratégias para promover pertencimento racial nas escolas
Embora a escola ainda enfrente limitações na formação do sujeito, a organização do ambiente escolar desempenha um papel pedagógico crucial na construção de identidade, conforme destaca Luciano Amorim.
Amorim afirma que “a disposição da sala de aula, a seleção e organização dos materiais, e até mesmo a arquitetura do espaço influenciam diretamente o aprendizado”. Ele destaca a importância de ações como “a inclusão da literatura, o diálogo com aparelhos culturais negros da cidade e a valorização dos mais velhos da comunidade” para criar estratégias eficazes no fomento ao pertencimento racial.
O pesquisador também enfatiza a necessidade de combater o racismo estrutural desde a educação infantil, destacando que as creches, como primeiro acesso à escola, devem estabelecer um “diálogo contínuo sobre esses sujeitos a partir da perspectiva da negritude”.
Para ele, as primeiras referências positivas a serem oferecidas às crianças negras são elas mesmas: “mostrar que são capazes, que são brilhantes, que seus corpos são lindos, que seus cabelos são belos e que suas comunidades têm valor”.
Amorim também lembra que a escolha de materiais, como “literaturas infantis com referências afirmativas e brinquedos que evidenciem marcadores raciais”, é uma ferramenta poderosa para evitar a reprodução de estereótipos e auxiliar na construção de um ambiente educacional inclusivo.
Ele também cita a contribuição de autoras como Nilma Lino Gomes, Eliane Boa-Morte e Eliane Cavalheiro, que auxiliam na reflexão e na ressignificação da educação infantil e das práticas pedagógicas antirracistas.