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Invisíveis e órfãs: Pandemia afeta desenvolvimento das crianças na primeira infância

As crianças de 0 a 6 anos vivem realidades distintas diante de uma crise sanitária não democrática, que impacta as famílias de modo diferenciado e coloca barreiras também no desenvolvimento integral dos pequenos

Foto mostra uma criança negra e ilustra texto sobre consequências da pandemia na primeira infância.

Foto: Imagem: Kindred Hues Photography/Unsplash

15 de dezembro de 2021

As crianças de até seis anos, faixa etária que compõe a primeira infância, também sofreram as consequências das alterações provocadas pela pandemia na vida da população. Apesar de estarem entre as menos afetadas pelos casos graves de Covid-19, as crianças viram mudanças estruturais em diversos setores, como na rotina, no desenvolvimento e nas condições familiares.

O documento “O Impacto da Pandemia da COVID-19 no Aprendizado e Bem-Estar das Crianças”, publicado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, reúne dados que revelam como a interrupção das atividades presenciais nas escolas durante a pandemia afetou a aprendizagem das crianças e também ampliou as desigualdades educacionais na primeira infância. No Brasil, o fechamento das escolas em março de 2020 afetou o cotidiano de 93% das crianças de quatro a cinco anos e 34% das crianças de até três anos matriculadas em creches e pré-escolas. Um universo de 8, 9 milhões de crianças.

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Segundo a psicóloga e doutora em Estudos da Criança, Juliana Prates, houve uma invisibilização muito grande das crianças durante a pandemia. “A pandemia fez com que essas crianças deixassem de circular no meio público. Elas deixaram de ser vistas enquanto sujeitos e não foram uma prioridade, tanto que as condições de retorno à escola foram difíceis de se pensar e de se pautar”, afirma.

Cada criança vive uma pandemia diferente

De acordo com Juliana Prates, a pandemia se relaciona com variáveis sociais e fatores de risco anteriores à própria doença. Essas condições atravessam e impactam a vida das crianças e de seus cuidadores de uma forma diferenciada em relação a como esse momento está sendo experienciado e das vulnerabilidades sociais que essas pessoas vivem.

“A gente tem crianças que já nasceram na pandemia e isso significa que elas estão tendo um ciclo de relações mais restrito, porque estão convivendo com menos pessoas e também estão mediadas por esses novos aparatos, como máscara e álcool em gel. A gente tem crianças que estão vivendo em contextos em que não mudou nada porque viviam em condições econômicas sem acessos, então os cuidados de higiene não puderam ser modificados. Também tem crianças vivendo em situação de rua”, exemplifica.

Segundo estudo da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, pelo menos 12.211 crianças de até seis anos no idade Brasil ficaram órfãs de um dos pais em decorrência da Covid-19.

Ana Cláudia Cifali, advogada do Instituto Alana, organização que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança, destaca que falar sobre os efeitos da pandemia no Brasil também é falar sobre a gestão ineficiente dela, que retardou as ações de vacinação em massa, a abertura das escolas e dos espaços de convivência, que são fundamentais para as crianças.

“Com isso, a gente pode falar de várias consequências da pandemia em geral nos direitos de crianças e adolescentes que podem afetar sua saúde e seu desenvolvimento. A gente viu nesse período um aumento do número das violências contra as crianças, um aumento da fome, da insegurança alimentar, da exposição ao tempo de tela e da redução do brincar na natureza, além da paralisação das atividades escolares e creches,, elementos que impactam no desenvolvimento integral das crianças”, pontua.

Nesse contexto, as crianças negras acabam sendo mais impactadas pela pandemia por conta dos fatores históricos e sociais que colocam as famílias negras em condições de maior vulnerabilidade social e de uma ausência de estrutura que as desampara em um momento como este de pandemia. 

O documento publicado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal revela que as desigualdades educacionais aumentaram durante o ano de 2020 e as crianças em situação de vulnerabilidade social foram mais fortemente impactadas e aprenderam em um ritmo mais lento do que seus pares.

Segundo a advogada Ana Cifali, com a pandemia e a suspensão das atividades, especialmente nas creches, também houve a suspensão ao acesso dos recursos fornecidos por esses locais, tanto pedagógicos, culturais, mas também especialmente de alimentação.

“Foi suspendida realmente uma parcela importante da alimentação dessas crianças. No caso da fome, a ausência de uma nutrição adequada no começo da vida também pode vir a prejudicar e afetar toda uma trajetória. Um estado nutricional adequado está diretamente relacionado à promoção do crescimento e ao desenvolvimento infantil, a uma melhor resposta imunológica e a redução da mortalidade, sendo crucial para a recuperação no caso de ocorrência de doenças e infecções”, destaca.

De acordo com pesquisas realizadas pela Unicef, em parceria com o Ibope e o Instituto de Pesquisas Cananéia (IPec) sobre os impactos da pandemia sobre a infância, 63% da população entrevistada entre os que residem com crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos tiveram perda da renda familiar durante a crise sanitária, sendo que 6% deixaram de comer porque não tinham como comprar alimentos.

Juliana Prates pontua que a pobreza é um fator de risco reconhecido em todos os estudos para o desenvolvimento e estar nessa situação de pobreza aumenta a vulnerabilidade das crianças, porque há uma ausência de recursos.

“É muito difícil poder ser responsivo, cuidar, quando falta tudo, quando faltam condições mínimas de segurança para a vida. Então a gente tem crianças que ficaram muito mais desassistidas do que outras crianças. Crianças que não tiveram possibilidade de ter um espaço de estimulação com livros, com brinquedos, porque não tiveram instituições que pudessem atendê-las”, complementa.

Em relação às consequências psicológicas para o desenvolvimento que a situação de pandemia pode gerar nas crianças, a advogada Ana Cifali ressalta que o estresse gerado pelo medo da pandemia, pela perda de familiares e todo o contexto de aumento da violência, da pobreza, da fome, além da desorganização das rotinas, da convivência familiar, social, contribuem para o sofrimento psicológico e, consequentemente, para uma pré-disposição a um estresse tóxico.

“É o tipo de estresse que pode vir a impactar a arquitetura cerebral, mental, risco de doenças físicas e mentais, sempre relacionado a esse estresse. Então esse estresse tóxico pode gerar efeitos no aprendizado, no comportamento e na saúde durante a vida”.

Juliana Prates complementa que, apesar das crianças não terem, muitas vezes, recursos cognitivos e psicológicos para compreender morte, medo e pandemia, conseguem ser muito sensíveis aos estados emocionais de seus cuidadores.

“Então imagina o que é ser cuidado por alguém que está absolutamente em pânico, porque não tem emprego, porque perdeu o emprego, porque não tem onde deixar a criança, porque não tem rede de apoio, porque não sabe o que vai comer no dia seguinte. Uma criança pequena é muito sensível a esses estados emocionais dos adultos, que vão ser influenciados por recursos e condições concretas do estado social de bem estar”, pontua.

Leia também: Racismo na escola impacta diretamente o desenvolvimento das crianças

Cuidar de quem cuida

Julia e a Filha.

Júlia Oliveira e a filha de 4 anos | Crédito: Arquivo pessoal 

A faturista hospitalar Júlia Oliveira conta que sua filha de quatro anos já é acostumada com as atividades, rotina e com a convivência com os amigos e, no ápice da pandemia, as escolas particulares também tiveram que fechar e ela sentiu bastante o impacto de ter que ficar em casa e sair da rotina que já estava acostumada.

“Por outro lado, como também tive que trabalhar em home office, conseguimos passar mais tempo juntas realizando nossas atividades e tendo momentos em família que normalmente com a correria do dia a dia não conseguíamos”, relata.

Segundo a psicóloga Juliana, a família tem um papel fundamental, mas ela também deve ser alvo do sistema de ajuda. Considerando que nem todas as famílias conseguiram a possibilidade do home office, é importante pensar como apoiar as famílias para que elas possam lidar melhor com os inúmeros desafios que se apresentam sem um suporte coletivo, social e de políticas públicas.

“Foi necessário um jogo de cintura muito grande das famílias para dar conta dessas demandas diversas, como cuidar das crianças e gerir a atividade laboral. A gente sabe da importância de uma rede de apoio para as crianças, mas a gente não dá as condições necessárias para essa rede de apoio existir. Eu entendo que a gente precisa cuidar de quem cuida da criança. A criança pequena só estará cuidada quando o cuidador for cuidado para que eles possa também cuidar do outro”, pontua a psicóloga.

Retomada é reconstrução

De acordo com a psicóloga Juliana, a pandemia denuncia a ausência de espaços públicos de entretenimento, de lazer ao ar livre, elementos que seriam importantes durante a crise. Além disso, a pandemia vai denunciar a ausência de preparo para lidar com a primeira infância, a inequidade de gênero e a sobrecarga materna.

“As nossas cidades não estão prontas para acolher as crianças e isso restringe ainda mais a possibilidade de interação delas no espaço público”, completa.

Ainda assim, segundo a psicóloga, os efeitos da pandemia sobre as crianças não são irreversíveis e todas as soluções a serem construídas neste momento de retomada durante a pandemia precisam ser construídas com as crianças, respeitando os limites dela, explicando pra ela as coisas que estão acontecendo.

“Eu acredito muito no potencial resiliente e transformador do próprio desenvolvimento. Então a gente vai precisar prover condições para que esses danos não sejam irreversíveis. Primeiro, a gente vai precisar escutar muito as crianças. Eu acho que a gente vai ter que ouvir as crianças sobre esse retorno, acolhendo seus medos. A gente vai precisar construir com ela uma forma de inserção. É retomada, mas é reconstrução”, pondera Juliana. 

Durante a retomada das aulas e da vida neste momento, a advogada Ana Cifali completa que o apoio psicossocial é fundamental. “A gente tem a questão das crianças orfãos da Covid, então nós defendemos uma política nacional de amparo aos órfãos, que abarca tanto auxílio financeiro como socioassistencial para as crianças e seus possíveis cuidadores. Na educação, a gente recomenda uma política nacional de recuperação da aprendizagem pós-Covid. Em um ano que a gente vai entrar em eleições a gente precisa que a pauta da infância seja colocada como prioridade política, como prioridade absoluta tal como a nossa constituição determina”, finaliza.

Este conteúdo é resultado de uma parceria entre a Alma Preta Jornalismo e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que existe para desenvolver a criança para desenvolver a sociedade. A fundação elege quatro prioridades: mobilizar as lideranças públicas, sociais e privadas; sensibilizar a sociedade; fortalecer as funções dos pais e dos adultos responsáveis pelas crianças e melhorar a qualidade da educação infantil no Brasil.

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