Foi nas escolas públicas de Cajazeiras, periferia de Salvador, que Gabryele Moreira, de 29 anos, deu início a uma jornada de muita dedicação e estudos que a levou a estar no topo de sua carreira. Formada em Física Médica pela Universidade Federal do Sergipe, a baiana é a única negra brasileira da história e uma das 100 mulheres do mundo a ganhar uma bolsa de 20 mil a 45 mil euros da Agência Internacional de Energia Atômica. A agência, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), coordena todos os trabalhos no campo da radioatividade no planeta.
Filha da dona de casa Lúcia Maria e do rodoviário Adniton Teixeira, a jovem ultrapassou todas as barreiras possíveis para ocupar o posto de destaque em sua área. Mestranda em Tecnologia Nuclear no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares da Universidade de São Paulo (IPEN-USP), ela estuda a emissão de radiação de algumas substâncias para, a partir da energia que disparam, fazer uma leitura ambiental, geológica, química e biológica da matéria.
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Mas não foi apenas seu brilhantismo nos estudos e talento acadêmico que a levou a galgar a bolsa mais importante para mulheres que estudam radiação. Dentro do IPEN, ela é uma das poucas pesquisadoras negras que existem. “Eu comecei a perceber que as pessoas negras que ali estavam não eram da academia, elas estavam na limpeza, no almoxarifado, na portaria, no cafezinho”, conta a cientista.
“Eu me relacionava com elas, me via no rosto dessas pessoas. Isso me fez querer mostrar o quanto nós, negros e negras, não estávamos representados”, afirma.
Gabryele então decidiu fazer um estudo sobre o perfil sociocultural da mulher trabalhadora do IPEN, um dos mais renomados institutos de pesquisa nuclear do Brasil, onde fica o único reator do país. O IPEN é uma autarquia vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) do Governo do Estado de São Paulo. É técnica e administrativamente gerido pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), uma agência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Governo Federal. De acordo com o Instituto, a instituição produz 25 medicamentos para oncologia diferentes, que representam 85% da produção nacional, e 700 mil tratamentos contra o câncer que utilizam a medicina nuclear.
Foi dentro dessa organização de tamanha importância científica que Gabryele passou a fazer discussões de gênero e raça. Para fazer o levantamento, a jovem teve como base pensadoras como Angela Davis, Marielle Franco, Conceição Evaristo e Lélia Gonzalez, além da inspiração do ícone mundial dos estudos em radiologia Marie Salomea Skłodowska Curie, uma física e química polonesa com cidadania francesa, responsável pela descoberta dos elementos químicos rádio e polônio.
Em sua pesquisa ela pôde notar, dentre outros resultados, que, no Instituto, 83,7% das mulheres identificam como brancos, 9,6% se autodeclararam pretos (pretos e pardos), 6,7% como amarelos e nenhuma se declarou indígena. O questionário foi aplicado a pesquisadoras, bolsistas e corpo administrativo, além de mulheres de cargo de chefia. Foram 110 respostas ao todo, sendo que, hoje, a quantidade de mulheres que trabalham no IPEN passa de 400.
“Eu precisava falar sobre isso. Eu sou uma mulher negra, vinda da periferia de Salvador. Fui cotista e bolsista. Só posso estar aqui por conta de tantas pessoas que me precederam”, diz Gabryele. Ela conta que sua origem é semelhante a de dezenas de pessoas nas favelas. “Tenho pessoas presas na minha família, pessoas que moram na rua. Eu e minha irmã (graduanda em Ciência da Computação, na Universidade Federal da Bahia) somos uma excessão”, afirma a cientista.
A pesquisa de gênero, além de sua pesquisa com radioatividade, fez com que ela ganhasse a bolsa Marie Sklodowska-Curie, que todos os anos premia 100 mulheres expoentes em estudos sobre radioatividade no planeta. O subsídio, que será entre 20 mil e 45mil euros, irá custear toda a vida acadêmica da jovem e também dará a oportunidade de estágio remunerado na Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA/ONU).
“Eu cheguei no auge da carreira com essa bolsa. É o sonho de todo cientista que trabalha com radiação estar na AIEA”, celebra.
Ela ressalta que não foi fácil sair de Cajazeiras e estar onde está agora. “Foi muita luta sair da periferia de Salvador, estudar em Sergipe ganhando só a bolsa de R$650. É uma solidão muito grande a vida acadêmica, porque a gente não tem nenhuma referência, alguém parecido conosco”, conta.
Gabryele, que faz parte do WIN Brasil Nuclear, grupo que reúne mulheres que trabalham nessa área, pretende ser uma referência para meninas e mulheres que pretendem ser cientistas. “Nosso povo, o povo preto, só precisa de oportunidades. Mas não estamos falando só das cotas, precisamos de uma forma de nos manter, de termos qualidade de vida, de poder competir de igual para igual. Quero mudar isso e levar minha história para mais meninas negras”, conclui.
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