Você já ouviu falar em genocídio biomítico? Sabe qual o impacto dele para os povos tradicionais de matriz africana? Esse conceito se materializa seja por meio de ataques de intolerância religiosa ou destruição de territórios sagrados ou situações de violência material e simbólica, que são frequentes quando se tratam das manifestações culturais dos povos de terreiro, sobretudo as religiões de matriz africana.
Para entender o que é genocídio biomítico, é preciso compreender a etimologia da palavra, que significa a união do biológico e do mítico, em que a natureza e o sagrado são essenciais, já que os orixás são representantes de cada elemento da natureza, fortalecendo a relação entre o mundo físico e o mundo espiritual.
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Além disso, os cultos mantém as tradições e a cultura de povos historicamente explorados, como os povos africanos. Segundo a ialorixá e coordenadora do FOSENPOTMA (Fórum Nacional de Segurança alimentar dos povos tradicionais de Matriz Africana), Bernadete Souza, o genocídio biomítico acontece quando o biológico e o sagrado são violados por ações cometidas pelas instituições de poder, incluindo o Estado e religiões neopentecostais.
“O genocídio biomítico se caracteriza pelas ações de violência material e simbólica cometidas pelo Estado, grupos ligados a religiões ditas cristãs neopentecostais e grupos fundamentalistas racistas contra os povos tradicionais de matriz africana (jêjes, bantos e Iorubanos). As vítimas do holocausto da escravidão reconstituíram, nas unidades territoriais tradicionais (terreiros), o modelo existencial e mítico referenciado no culto à natureza e aos ancestrais, que reúne em torno destas práticas civilizatórias todo conjunto de descendentes africanos. Quando os materiais biológicos e minerais sacralizados e implantados específicamente em cada terreiro é atacado e violado aí se constituí a ação de genocídio”, explica a coordenadora.
Recentemente, lideranças religiosas do candomblé em São Francisco do Conde, na Bahia, organizaram uma audiência pública após serem alvo de intolerância religiosa proferida por um pastor da cidade, conhecido como ‘Torre Vigia’. Em um vídeo publicado em outubro, o pastor aparece em um imóvel onde funcionava um terreiro, que será transformado em uma igreja.
Durante a transmissão, ele diz que o antigo terreiro é “a casa do diabo” e chama um orixá de “satanás” e “desgraçado”, enquanto dá tapas no desenho do orixá pintado na parede. A situação de violência levou à mobilização de lideranças de terreiros de candomblé, que realizaram uma audiência pública na Câmara da cidade para a discussão do genocídio biomítico e quais são as suas consequências para os povos de terreiro.
Para Bernadete Souza, é preciso que o debate seja coletivo, feito também nas esfera da educação e dos poderes executivos (municipal, estadual e federal), ampliando a quebra de preconceitos e do racismo em torno das religiões de matriz africana, e fornecendo ferramentas políticas para o enfrentamento contra o racismo religioso, da intolerância e do ódio religioso.
“O debate desse tema é fundamental e paradigmático. Primeiro porque representa um recorte necessário para afirmação da identidade afro-brasileira de grande parte da população que tem tal origem. Com isso, podemos ampliar o horizonte conceitual dos conteúdos de combate ao racismo e situar a existência destas unidades territoriais tradicionais, não como espaço de ‘religiões’ e, sim, como nações e, nesta condição, considerando a natureza laica do Estado, habilitar disputas de políticas públicas preparatórias “, ressalta Bernadete.
A coordenadora também aponta que o Fonsanpotma tem atuado nas principais frentes de ação para combater o genocídio biomítico, que, segundo ela, precisa ser uma luta coletiva, para além dos povos de terreiro, garantindo a subisistência destes que possuem um sistema próprio de alimentação, linguagem, preservação e relação com a natureza.
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Entre as ações mobilizadas pelo Fonsanpotma, estão a articulação com lideranças parlamentares, a defesa de leis que contemplem as demandas de reparação histórica dos povos de matrizes africanas, além da luta por segurança alimentar e nutricional dos povos de terreiro numa perspectiva de africanidades, fornecendo alimento para as comunidades e os orixás.
“O que as pessoas comem, as entidades comem e isso é essencial para a existência e reexistência dos Potmas, em articulação num sistema de circuito de produção e consumo em redes de cooperação”, completa a coordenadora, que também pede por medidas mais efetivas na responsabilização de indivíduos e instituições que cometem ataques contra as religiões de matriz africana.
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