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‘Ver minhas crianças com fome me dá vontade de desistir’, lamenta mãe solo

Com a falta de emprego e a insegurança alimentar, mulheres se submetem a situações de humilhação para sustentar suas casas; medo e incertezas para o futuro são sentimentos constantes

Texto: Caroline Nunes | Edição: Nataly Simões| Imagem: Reprodução/Depositphotos

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Foto: Reprodução

8 de outubro de 2021

“A fome traz tristeza, deixa a gente humilhada. Eu saio de máscara mais por vergonha do que pra me proteger do coronavírus. Ver minhas crianças com fome, sem as coisas, me dá muita vontade de desistir de tudo. Eu não sei até onde a gente vai aguentar assim”, desabafa A.S*, mãe de seis filhos, desempregada há um ano, moradora da periferia de Ubatuba, litoral norte de São Paulo.

A falta de recursos, diminuição do valor do auxílio emergencial, desemprego e alta nos preços dos alimentos têm causado desespero na mãe solo e em tantas outras famílias. São 19,1 milhões de brasileiros com fome, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Em relação a 2018 (10,3 milhões), são quase 9 milhões de pessoas a mais nessa condição.

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A.S conta que no início da pandemia até era possível se virar com o auxílio emergencial e também com bicos esporádicos como faxineira. No entanto, com o passar dos meses, a situação se agravou, e cada vez é menor o número de coisas que são possíveis de comprar no mercado, de acordo com a renda disponível dela.

Assista: ‘O que está por trás da alta no preço dos alimentos?’

“O que eu faço com R$ 300? Eu compro arroz, feijão, macarrão, óleo e sal. Café às vezes. Mas em uma casa com sete pessoas, nada dura, nada rende. Quando as crianças estão com muita fome, eu dou água com sal para elas beberem. Dá a sensação de estômago cheio e segura algumas horas até eu encontrar alguma coisa para fazer para comer”, conta.

A mãe ressalta que na idade que seus filhos têm (16,12,10,6, 4 e 2 anos, respectivamente), uma alimentação saudável é primordial para o desenvolvimento dos menores. Para tentar encontrar recursos, A.S diz que recorre às feiras livres a fim de arrecadar legumes e verduras.

“No final da feira sempre sobra coisa. Ali tem que usar a criatividade, não ter nojo. Se lavar direitinho, dá pra preparar e comer. A caçula [2 anos] está abaixo do peso, então eu me preocupo com isso. Se eles ficarem doentes, como vou fazer? Isso me tira o sono. A fome me tira o sono”, lamenta a mãe.

Preocupações

Outra mãe em situação financeira difícil é M.F*, moradora de Guarulhos, na Grande São Paulo. Com dois filhos em idade escolar fundamental (9 e 11 anos, respectivamente), a mãe diz que desde o início da pandemia, seu primogênito já foi parar no hospital diversas vezes com queda de pressão pela falta de alimentos.

“As pessoas acham que eu maltrato meus filhos, mas eu deixo de comer pra dar pra eles. Ele [filho mais velho] sempre teve saúde frágil. Então vira e mexe ia para o hospital com tontura, dor de cabeça. Na verdade era fome. Arroz com polenta não dá sangue”, pondera.

Com a volta às aulas na modalidade presencial, M.F* se sente aliviada com a questão alimentar, ao mesmo tempo que teme que o contato com outras crianças possa deixar os filhos doentes. A preocupação é proveniente do luto: M.F* perdeu pai e mãe, com os quais morava, em abril deste ano para a Covid-19. Segundo ela, os dois se recusaram a tomar vacina e foram influenciados por fake news.

“É uma faca de dois gumes. Se deixo eles em casa, sei que estão protegidos, mas com fome. Se mando para escola, sei que vão se alimentar. Mas vai saber se tem alguma criança com Covid ali? Eu sei que dos meus eu cuido, mas tem gente negacionista demais”, avalia.

M.F* teme ainda por mais uma coisa: sua segurança. A ex-diarista comenta que nas madrugadas sai em busca de alimentos nas lixeiras da cidade. Com a dispensa de suas antigas patroas, que eram mulheres autônomas e também foram prejudicadas pela pandemia, ela conta que esse foi o único recurso que têm encontrado nos últimos tempos.

“Eu sou mulher, então eu tenho medo de sair sozinha de madrugada. Tenho medo de ser violentada. Mas pior é ver minhas crianças sem ter uma bolacha, um iogurte. Também tenho medo de alguém me reconhecer e zombar dos meus meninos na escola, do tipo: ‘sua mãe revira o lixo, vocês comem lixo’. É muito constrangedor”, desabafa.

Dificuldades

‘Eu tive um homem na minha vida inteira. O pai dos meus filhos. Aí o que ele fez quando a situação apertou? Me largou aqui e voltou para a Paraíba, com a nova esposa dele. Eu não posso contar com ele para nada, ele nem com os filhos quer falar”, se indigna A.S. “O dono da casa que eu moro foi muito bom para mim, não me despejou, mas até janeiro preciso regularizar ou vou ter que sair de casa. Eu até evito pensar nisso”, comenta.

Ela conta que as únicas pessoas que a ajudam a driblar a fome e conseguir insumos para seus filhos são os vizinhos próximos e a comunidade da igreja em que faz parte. No entanto, até para os fiéis a condição ficou mais precária.

“Um dia a irmã que separava alimentos começou a chorar e disse que não tinha o suficiente para montar sequer uma cesta. As pessoas não estão doando alimentos porque não têm nem para elas, imagina para os outros. A igreja não faz milagre, não tem como alimentar todas as bocas que aparecem. Se não fosse a bondade dos meus vizinhos com certeza a situação estaria muito pior”, relata.

Leia também: ‘Insegurança alimentar: comida saudável sumiu do prato dos brasileiros’

“Sem luz, sem gás, eu saí um dia de porta em porta pedindo vela para acender de noite e meus filhos não ficarem no escuro. Arrumei umas madeiras, fiz um fogão com uns blocos. As pessoas ajudam, mas dentro do possível. A fome não é exclusividade minha”, pondera.

“Prefiro revirar o lixo do que pedir”

M.F relembra que após o falecimento dos pais várias pessoas próximas começaram a lhe julgar e constranger. “Me chamaram de morta de fome, sustentada pelos pais. Eu sempre trabalhei, mas agora não tenho serviço e sou tratada assim. Eu choro de vergonha, então prefiro me afastar”, lamenta.

A mãe conta que uma vez foi em um supermercado do bairro para tentar pegar osso e sebo dos açougues. Ela se emociona ao lembrar que foi maltratada tanto pelos funcionários do local quanto pelas pessoas que estavam na rua.

“Eu ouvia coisas do tipo ‘vai trabalhar, tem força ainda, para de ser encostada’. Eu me senti humilhada. Hoje, prefiro revirar o lixo do que pedir. Ninguém sabe que eu perdi meus pais, que eu crio meus filhos sozinha, perdi meu marido para um câncer, tenho um filho sem saúde, estou com a luz cortada. A vida já me humilha demais, ninguém mais precisa fazer isso não”, comenta.

Esperança e marcas

A.S relata que toda a situação de fome e insegurança deixou marcas irreversíveis em seus filhos. Ela comenta que sua filha mais velha tem crises de ansiedade e se culpa por não conseguir ajudá-la com as despesas.

“Não é culpa dela [filha]. É culpa desse presidente horrível que o Brasil tem. Desde que ele [Jair Bolsonaro] entrou, tudo de ruim passou a acontecer. Eu não culpo meus filhos, não culpo meu ex-marido, culpo esse genocida que odeia preto e pobre. Ele quer matar gente de doença e de fome, e ele está conseguindo. Antes dele tinha emprego, agora, ex-patroa minha posta no facebook que oferece faxina. Gente com curso superior e tudo”, salienta.

“Eu só quero que meus filhos tenham dignidade e saibam que nada vem fácil, mas que não precisava ser tão difícil assim. Eu tenho esperança de que as coisas vão melhorar, eu só não sei quando, mas falo para eles que o que é ruim também passa”, completa A.S.

Já M.F se diz esperançosa com uma oportunidade de trabalho. Segundo ela, uma amiga a indicou na empresa que trabalha e a entrevista é na semana que vem. “Estou pedindo a Deus que gostem de mim e me contratem. É para limpeza, eu sou caprichosa. Só preciso de uma oportunidade. Aliás, acho que todo mundo que tá passando necessidade e fome precisa”, finaliza.

As mulheres A.S* e M.F* tiveram suas identidades resguardadas a fim de evitar constrangimentos.

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