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‘Uma luta pela sobrevivência’, diz diretora de filme sobre o boxeador Emile Griffith

Filme 'Dois Garotos que se Afastaram Demais do Sol', ambientado no mundo do boxe, traz conflitos sobre racismo e homofobia; história real de pugilista campeão mundial e gay ganha profundidade na leitura de Lucelia Sergio, da cia. Os Crespos

Texto: Juca Guimarães I Edição: Nadine Nascimento I Imagem: Fuzuê Filmes

cia de teatro faz filme sobre boxe, racismo e homofobia

6 de outubro de 2021

No 12º round de uma luta de boxe pelo título mundial na categoria de meio-médio, em 1962, nos EUA, o pugilista negro e gay Emile Griffith atingiu o seu oponente Benny Kid Paret com uma sequência brutal de 28 socos na cabeça em poucos segundos. Após este nocaute, Paret, que era cubano, ficou dez dias em coma e morreu.

Essa história real, sobre os dois campeões mundiais de boxe, é contada no filme “Dois Garotos que se Afastaram Demais do Sol”, dirigido por Cibele Appes e Lucelia Sergio, da companhia de teatro OsCrespos.

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O filme estreou este mês na terceira edição do festival de cinema negro “Faz Lá o Café”, com uma parceria do Grupo Clariô de Teatro e a cia. Os Crespos, e é uma obra com reflexões profundas sobre negritude, preconceito e afetividade. O roteiro é baseado na peça escrita pelo dramaturgo Sérgio Roveri. Na versão cinematográfica, a diretora optou pelas imagens em preto-e-branco e em destacar a história e os dramas dos dois pugilistas de boxe e da sociedade nos anos 60.

“Eu gostaria que as pessoas se sentissem incomodadas com essa história, que elas desejem que tudo isso acabe. Temos que alimentar esse desejo, difundi-lo. A empatia é o primeiro ouvido”, disse Lucelia.

No elenco estão os atores Sidney Santiago Kuanza, Rodrigo de Odé, Teka Romualdo, Mônica Augusto e Eduardo Silva. Confira a entrevista exclusiva da Alma Preta Jornalismo com a diretora geral do projeto.

Alma Preta Jornalimo (APJ): O que a história do Emile Griffith tem de contraponto com a realidade brasileira atual e como você espera que as pessoas reflitam sobre a obra?

Lucelia Segio (LS): O Emile foi um homem que conviveu com um fantasma que o perseguia e pode parecer que foi ele mesmo quem o despertou. Sua luta por sua dignidade o levou à violência extrema e, portanto, à sua condenação. Nesse caso não por matar alguém, mas “por amar alguém”, como ele mesmo disse. Ele estava sob os holofotes de um mundo completamente desigual e racista e tinha de usar os punhos para sobreviver. Algumas dessas descrições se encaixam com a vida de muitas pessoas negras. Está relacionado a uma condição no mundo. Esse tipo de construção de identidade vai dialogar com pessoas negras da diáspora de qualquer época, porque em nossa sociedade há sentimentos que são impingidos para a constante subalternização de alguns corpos. Emile também lutou contra as formas de masculinidade no mundo em que viveu, e milhares de pessoas LGBTQIA+ hoje nos provocam a pensar sobre os limites que foram impostos para identidade de gênero, modo de vestir, família, enfim. A luta continua nesses dois fronts, está longe de terminar, mas já conseguimos visualizar seu fim e é disso que se trata. Eu gostaria que as pessoas se sentissem incomodadas com essa história, que elas desejem que tudo isso acabe. Temos que alimentar esse desejo, difundi-lo. A empatia é o primeiro ouvido.

APJ: O episódio mais marcante na vida do Emile aconteceu em 1962 e é retratado no filme, o que você acha que mudou de lá até hoje em relação ao preconceito e à homofobia no boxe e em outros esportes de alto rendimento?

LS: Não sei responder. Eu não estudei o “mundo do boxe”, eu estudei o boxe enquanto luta e enquanto imaginário. Para falar do que falamos no filme, o boxe é um signo, não o protagonista. A gestualidade das personagens parte dos movimentos de golpes e defesas do boxe e o confinamento do ringue, no qual alguém sobrevive enquanto o outro morre, é utilizado para estabelecer paralelos com nossas relações raciais e afetivas. Como os lutadores de hoje pensam e como se comportam, eu não fui buscar, porque nos interessa aqui discutir a brutalidade da forma e como ela revela uma estrutura social. Fomos entender a relação entre auto-defesa e legítima defesa, tão utilizada contra nós, negros. Aquelas personagens batem na cabeça um do outro, enquanto lutam para sobreviver, não porque eles escolheram isso entre as várias opções que a vida lhes deu. A nós não são dadas variadas opções. Agora, eu acredito, que como em outros universos brutalizados, há hoje a construção de brechas para vislumbrar outros mundos possíveis. Conhecemos um lugar chamado MMBoxe, no qual o treinamento tem finalidades sociais e onde a diversidade não é rejeitada. Não se trata de dizer que todos os espaços esportivos desse tipo são machistas e homofóbicos, isso não é verdade, mas espaços como esse que relatei são raros e isso mostra o tamanho do problema refletido em todos os âmbitos das relações sociais.

APJ: O filme narra com muita sensibilidade a vida dos dois oponentes. Como foi que surgiu a ideia de humanizar os dois lutadores dando mais profundidade à história?

LS: O filme parte da obra do dramaturgo Sérgio Roveri, que apresentou esse olhar delicado para a vida do Benny Kid Paret também. E foi exatamente isso que mais me chamou a atenção no texto: não criar uma dualidade vazia. Como um grupo de teatro negro, o que nós fizemos foi ampliar a leitura sobre essas personagens, a partir de nossa experiência como pessoas negras e de nossos estudos filosóficos sobre nós mesmos, que fazemos há 16 anos. O Kid era um garoto de 22 anos, com uma mulher grávida e um filho pequeno, que fugiu da Cuba pré-revolucionária, quando era escravo em lavoura de cana. A cabeça desse cara me interessa, porque dialoga com várias identidades massacradas e embrutecidas ainda hoje. Ele luta contra os seus fantasmas todos os dias. Lembremos que a brutalidade é uma forma construída e replicada culturalmente e, naquela situação, um tinha que derrubar o outro, nesse lugar tudo vale, não só os socos. A porta que se abre nesse “tudo vale” é muito perigosa. E eu não acho que as pessoas devam celebrar o nocaute incrível que o Emile provocou, eu acho que as pessoas devem olhar para essa cena e pensar: “que miséria humana tudo isso”. Por isso, convidamos as pessoas a pensar em outro final para essa história, um espaço no qual possamos entender nossas dores e o sistema que as provoca.

APJ: Apesar de ser sobre boxe, o filme não tem cenas de luta, de troca de socos. Foi uma decisão de direção evitar a violência explícita, mas falar abertamente de todas as violências que envolvem o mundo do boxe?

LS: A troca de socos está lá, o sangue está lá, mas somente o necessário. Não acreditamos que expor a dor, o sofrimento, e os corpos de pessoas negras seja o melhor caminho para falar sobre os nossos problemas. Há tanta violência envolvida nessa história. Violências que dizem muito mais da sociedade na qual vivemos do que a individualização das dores desses personagens. Todos estão em luta, todos os personagens negros da história precisam enfrentar situações de desumanização. A perspectiva da câmera como quem apanha ou quem bate, acabou ganhando muito mais força no trabalho. É como se ver socando ou se ver apanhando. Muito mais um diálogo que busca a reflexão, do que a reprodução de um vídeo que qualquer pessoa pode assistir na internet. A violência que discutimos, existente no mundo do boxe, existe em outros aspectos da vida. A diferença é, que em alguns lugares essa masculinidade pautada na violência e na intransigência, encontra espaço para se revelar e para revelar os desejos cruéis de uma sociedade, dominada pela cultura branca e hegemônica, que sente prazer na destruição dos corpos que consideram inferiores. Não é uma crítica ao boxe, no mundo todo algumas pessoas têm dificuldade em reconhecer que a virilidade e a construção sobre o masculino não tem necessariamente a ver com a sexualidade ou identidade de gênero de alguém. Há tantas masculinidades possíveis!

APJ: Essa foi a primeira experiência da companhia de teatro Os Crespos com cinema? Tem previsão de outros projetos deste tipo?

LS: Nós sempre pesquisamos o vídeo na cena em outros trabalhos da Cia. Mas, além dessa abordagem, nós já fizemos 2 curtas “D.O.R” (2009), que circulou por diversos festivais no mundo todo, e “Nego Tudo”(2010), um filme que dialoga com “O Nascimento de uma Nação” de D. W. Griffith, além de outros vídeos curtíssimos que chamamos de “Comerciais”. Tratam-se de paródias que criam produtos para curar as dores de ser negro. Na pandemia também produzimos o filme “Retratos de Carolina” a partir do nosso espetáculo “Ensaio Sobre Carolina” (2020), inspirado na vida e obra da escritora Carolina Maria de Jesus; e um documentário sobre teatro negro para infância e juventude, chamado “Afetos e Transgressões” (2021), que estreia esse mês.

Veja a programação de exibição do filme:

08, 09 e 10/10 – sexta e sábado, 21h, e domingo, 19h – Youtube do Teatro João Caetano

15, 16 e 17/10 – sexta e sábado, 21h, e domingo, 19h – Youtube do Teatro Arthur Azevedo (debate com direção e elenco no domingo após exibição do curta)

16/10 – sábado, 18h45 – pela Mostra “Quando o Palco Se Fez Cinema” no Youtube do CCSP

05, 06 e 07/11 – sexta e sábado, 21h, e domingo, 19h – Facebook do Teatro Alfredo Mesquita

12, 13 e 14/11 –  sexta e sábado, 21h, e domingo, 19h – Facebook do Teatro Cacilda Becker (debate com direção e elenco no domingo após exibição do curta)

 

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