O domingo do dia 19 de setembro era para ser um dia de praia e lazer. Os jovens Jamilton Bispo da Silva, de 22 anos, e Jorge Luís Silva Nascimento, de 23, seguiam para a praia da Preguiça, região central de Salvador, quando tiveram seus caminhos interrompidos por policiais militares das Rondas Especiais (Rondesp) da Bahia. Negros, os jovens tinham o mesmo perfil dos suspeitos de assalto a um ônibus, ocorrido no dia anterior, e foram encaminhados para a Delegacia de Furtos e Roubos sem ao menos terem o direito de contestar o crime colocado sobre os seus corpos.
Depois de horas na delegacia, os jovens foram soltos e ficaram desaparecidos até serem encontrados mortos no dia 20 de setembro. Os corpos dos jovens estavam com marcas de tiros de uma arma calibre 380 e foram localizados em uma área de lixão no bairro Granjas Rurais, a 7,4 km da delegacia. Os familiares acusam os policiais militares de terem matado os dois e questionam o desaparecimento deles na porta da delegacia. O que aconteceu entre a soltura até o desaparecimento das vítimas ainda é uma pergunta sem resposta e se tornou alvo de investigação.
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O perfil de Jamilton e Jorge Luís é o mesmo de 100% das pessoas assassinadas pela polícia baiana em Salvador somente no ano de 2020. É o que aponta um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), realizado a pedido do Profissão Repórter da TV Globo. A pesquisa revela o corpo negro e do sexo masculino como o perfil de todas as vítimas de mortes por intervenção policial na capital baiana no ano passado.
Ao todo, em 12 meses ocorreram 381 assassinatos, ou seja, uma média de 1,043 homem negro morto por dia. Cerca de 75% dos óbitos de pessoas negras, que não chegaram a ser detidas e levadas a julgamento, eram de jovens com idade entre 25 anos e 29 anos, todos homens. Em todo o estado, foram 1.137 mortos no ano passado e os negros correspondiam a 98% das vítimas.
Mesmo com a pandemia da Covid-19, o total de assassinatos provocados por policiais em foi muito acima dos anos anteriores. Foram 156 mortes em 2019, 99 em 2018, e 146 em 2017.
Em coletiva de imprensa sobre o caso de Jamilton e Jorge Luís, que são mortes mais recentes e deste ano, a delegada e diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Andréa Ribeiro, afirmou que não havia mandado de prisão contra os jovens. Além disso, no momento da abordagem, nenhum dos dois estavam com materiais que justificassem a prisão e encaminhamento à delegacia.
Em nota, a Polícia Militar da Bahia informou que PMs da Operação Gêmeos faziam rondas no comércio da região do Centro Histórico da cidade quando abordaram dois homens suspeitos de terem praticado um roubo a um coletivo no dia anterior. Os rapazes foram encaminhados para o Grupamento Especial de Repressão a Roubos em Coletivos (Gerrc), onde um deles teria sido reconhecido pelo cobrador do ônibus. Questionada sobre os critérios adotados durante as abordagens, a PM se limitou a dizer que “depende de critérios prévios de suspeição e a combinação de diversos outros fatores, tais como atitude, local, horário, circunstâncias, entre outros”.
Salvador é a capital brasileira com mais mortes em relação ao tamanho da população
A cidade de Salvador é a terceira capital brasileira com mais mortes por intervenção policial, atrás apenas do Rio de Janeiro (com 415 mortes) e São Paulo (390 mortes). Como as duas primeiras têm muito mais habitantes, São Paulo com 12,3 milhões e o Rio tem 6,7 milhões, o índice de letalidade policial na capital baiana é insuperável. Salvador lidera na comparação das mortes por intervenção policial em relação ao tamanho da população, que é de 2,8 milhões de pessoas.
Na capital baiana os assassinatos provocados por policiais geralmente não acontecem nos pontos turísticos ou áreas ricas da cidade. É nas periferias que o privilégio de se ter a chance de um julgamento, com uma pena que não seja a morte, se mostra para poucos.
Para o coordenador do IDEAS – Assessoria Popular, Wagner Moreira, a análise sobre violência policial na Bahia é prejudicada por conta da falta de dados, que quando existem são precários e desagregados.
“Os dados sobre segurança pública na Bahia se tornaram um tabu. As experiências nacionais de coleta e verificação em vários momentos encontraram empecilhos diretos do Governo Rui Costa (PT), que conduziu com maestria uma estratégia fundamental para que não exista contraditório. Essa disputa narrativa foi executada com excelência pelo ex-secretário Maurício Barbosa, que cumpriu o papel de tornar os dados sobre segurança pública na Bahia uma caixa preta ao longo de mais de uma década de sua gestão”, avalia.
Maurício Barbosa chefiou a Inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia na gestão do Jaques Wagner (PT), chegando a secretário de Segurança Pública.
Leia também: PM da Bahia é morto pela Polícia Civil de Pernambuco ao ser confundido com assaltante
Câmeras devem inibir violência e abuso policial
A Bahia iniciou, em agosto deste ano, os testes com câmeras acopladas nas fardas dos policiais militares. Através do equipamento, todas as ocorrências, confrontos, abordagens e ações ficarão registradas. Para o secretário da Segurança Pública, Ricardo Mandarino, as câmeras vão auxiliar os policiais “mostrando as dificuldades enfrentadas”, além de proteger a população de abusos de poder e violência policial, racismo e demais delitos que venham a ser praticados pelos agentes do estado.
Em São Paulo, o uso das câmeras obteve um resultado significativo na redução da letalidade policial. Após um mês do uso do equipamento, o número de mortes em decorrência de intervenções policiais caiu para 22, o menor índice já registrado desde maio de 2013.
Diante dos indicativos do aumento da violência policial na Bahia, Mandarino afirmou que a polícia do estado adotou uma mudança no comportamento durante operações e que, em 2021, houve uma redução de 33% no número de mortes em confrontos policiais.
Apesar da redução apontada pelo secretário, vidas negras seguem como alvo da violência policial. Em junho deste ano, duas mulheres foram baleadas durante uma ação policial no Curuzu, bairro de importância histórica para a população negra da Bahia.
Maria Célia de Santana, de 73 anos, e Viviane Soares, de 40 anos, estavam na porta de casa quando foram atingidas. De acordo com a Polícia Civil, equipes foram acionadas para atender uma ocorrência de roubo de carro na região quando houve confronto com suspeitos. O caso segue em investigação.
Uma das vítimas, Viviana Soares, era tia de Railan Santos da Silva, criança de sete anos que morreu durante uma operação policial no mesmo bairro em 2020. Ele acompanhava uma partida de futebol quando foi baleado durante um tiroteio da Polícia Militar. Railan morreu com um tiro no peito.